O autor David Foster Wallace marcou uma geração – não só de escritores, mas de grande parte dos cidadãos dos EUA. Nascido em 1962, David se matou em 2008, aos 46 anos. O impacto da morte chocou os estadunidenses e o reflexo da tristeza chegou no Brasil – o que, pelo menos, deu um novo fôlego à sua obra. Seu maior livro, Graça Infinita, tinha empacado por aqui, mas a perda do escritor trouxe novas luzes ao trabalho dele.
Em sua vida, David teve uma formação multidisciplinar: foi tenista federado, estudou Matemática, Letras e Filosofia – ainda que, devido à depressão e ao alcoolismo, tenha largado seu mestrado. A variedade de assuntos reflete não só um espírito curioso, mas também obsessivo: quando tenista, David conta que foi campeão dos torneios regionais porque fazia cálculos com as correntes de vento que passavam nas quadras e que, por isso, quando passou a jogar em quadras profissionais e fechadas, seu rendimento caiu drasticamente.
Sua escrita reflete a fixação. Ela é marcada pela (auto)ironia, metalinguagem e também por um desenvolvimento quase experimental, com direito a excessivas notas de rodapé, orações subordinadas, e um virtuosismo técnico quase enciclopédico.
No entanto, há uma vertente de seu trabalho que vive à sombra de sua ficção: a não-ficção.

“A gracinha por trás da própria tirada autodepreciativa é que muitos ensaios de Wallace são brilhantes e influentes justamente por causa dessa persona de escritor brincando de jornalista, a qual se revela por meio de uma grande inventividade narrativa e um assombroso poder de observação”, escreve Daniel Galera. E continua: “No conjunto, sua não ficção elabora com humor, sofisticação intelectual e uma atenção descomunal ao detalhe os mesmos temas centrais de sua ficção, entre os quais podemos citar o narcisismo como motor da alienação moderna, o poder destrutivo da ironia alçada à condição de visão de mundo totalizante, o niilismo travestido de liberdade e inconformidade, o preço espiritual dos vícios (em especial o vício em entretenimento) e a questão do que podemos fazer para tentar fugir da prisão de nossas próprias cabeças”.
Em Ficando longe do fato de já estar meio longe de tudo, Galera selecionou textos de não-ficção que gosta e, entre eles, estão os três textos que mais marcam a produção jornalística de David Foster Wallace. Em primeiro lugar, a reportagem homônima ao livro, que faz uma “incursão antropológica” em uma feira rural de Illinois. Além disso, há também o “Pense na Lagosta”, artigo sobre uma feira gastronômica que começa a refletir sobre o ato de cozinhar um animal vivo e se torna também um tratado de ética alimentar.
A última das reportagens é um relato minucioso sobre uma viagem num cruzeiro de luxo, chamado “Uma coisa supostamente divertida que eu nunca mais vou fazer”. O livro tem outros textos, mas é sobre este último que vamos nos debruçar. Nele, o método minucioso de escrita e observação de Wallace foi empregado a todo vapor em uma reportagem encomendada pela Harper’s. Ele retratou o ambiente da classe média em uma viagem pelo Caribe, com uma tripulação disposta a te “mimar até a morte”.
Daniel Galera nos avisa, logo no prefácio, que “o sentimento de deslocamento e a ansiedade trazida pela autoconsciência irônica, já explorados em outros textos, são exacerbados aqui com uma verborragia deliciosa e com o uso repetido de notas de rodapé por vezes quilométricas”. É verdade. A grande sacada da narrativa parece ser o deslocamento do cotidiano a um lugar de estranhamento.
Ao longo de sua trajetória, David Foster Wallace passa a descrever o dia a dia da tripulação, a trajetória dos turistas. Chega, no último dia, a fazer um registro como se fossem entradas em um diário, marcando as horas e suas ações. Por meio do seu olhar, passamos a enxergar como que uma película transparente que reveste a realidade e as pequenas ações.
A grande sacada da narrativa parece ser o deslocamento do cotidiano a um lugar de estranhamento.
Um dos momentos em que essa comparação fica clara é o da extensa análise sobre o Sorriso Profissional, comportamento padrão dos funcionários do cruzeiro. Wallace fala minuciosamente do desconforto e constrangimento que aparece no momento em que você encara um desses sorrisos, mas também da tristeza que isso gera quando você é saudado com uma Carranca Padrão.
Há também uma descrição do próprio funcionamento do navio, um movimento que vai do extremo conforto até a necessidade constante de conforto e servidão no extremo oposto do desconforto mortal. São episódios que buscam explicar o funcionamento das bagagens, da higiene sistemática do quarto, da culpa visível em pedir comida em sua cabine, da rapidez com que toalhas são recolhidas na piscina e pratos, no salão principal.
Esse costume é, aos poucos, equiparado ao de um “amigo com neurose”, que não limpa o ambiente porque te ama ou quer te fazer bem, mas por alguma mania de limpeza e que o melhor seria você ir logo embora dali, para que o ambiente tenha seu habitual equilíbrio da limpeza esterilizada. Ao mesmo tempo, as notas de rodapé são quase como mini-crônicas próprias, retratando o relacionamento do Wallace em espaços como a mesa de jantar ou pedidos exóticos ao capitão da embarcação.
Muitas outras leituras surgem da reportagem de David Wallace, mas o que emerge é a força da narrativa e do olhar do escritor ao retratar um cotidiano colocado em um espaço estranho e estrangeiro – além de, claro, fortes pitadas de seu humor ácido.
FICANDO LONGE DO FATO DE JÁ ESTAR MEIO LONGE DE TUDO | David Foster Wallace
Editora: Companhia das Letras;
Tradução: Daniel Galera e Daniel Pellizzari;
Tamanho: 312 págs.;
Lançamento: Outubro, 2012.
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