Ainda alimentados pelo espírito da Flip deste ano, que deu um grande espaço para autores independentes e autoras negras (e ainda autoras lésbicas, entre outros), comentamos neste texto a tradução para português do último romance lançado por Toni Morrison, Deus ajude essa criança.
Toni Morrison, ganhadora do Nobel de Literatura de 1993, publicou, em 2015, seu décimo primeiro romance, Deus ajude essa criança, no original God help the child. Aos 84 anos de idade, Morrison mostrava que ainda não era a hora de parar. Recebido positivamente pela crítica, o livro conta a história de Lula Ann Bridewell, ou Bride, nome que adotou quando adulta. A tradução traz a obra para o português em lançamento recente pela Companhia das Letras. A tradução é de José Rubens Siqueira.
Deus ajude essa criança é um retorno de Toni Morrison aos debates sobre colorismo. Acontece décadas depois de seu primeiro romance que focalizava o tema, o livro O olho mais azul, de 1970 (publicado no Brasil em 2003), o primeiro romance da escritora. Àquela época, Toni Morrison estava com quase 40 anos de idade, no começo tardio de uma carreira de muito sucesso.
A presença do debate sobre colorismo é um dos sinais do compromisso de Morrison em escrever prioritariamente para o público negro. O colorismo, ou shadism em inglês, é o nome dado para a discriminação praticada contra pessoas pelo seu tom de pele. Mais marcadamente inclui-se aí a diferença entre tons de pele mais claros, considerados melhores, e tons de pele mais escuros dentro do próprio grupo negro. Em O olho mais azul, o tema era tratado, porém, em um contexto diferente. Nesse primeiro romance, o cenário era os Estados Unidos da década de 1940.
A presença do debate sobre colorismo é um dos sinais do compromisso de Morrison em escrever prioritariamente para o público negro.
Enquanto isso, Deus ajude essa criança se passa no momento atual. Trata-se do primeiro livro da autora a trazer uma ambientação tão contemporânea. Traçar esse paralelo entre o primeiro e o décimo primeiro romance mostra como o colorismo mantém-se como uma questão pertinente. Apesar das décadas de distância entre as duas histórias, somos ainda pouco conscientes do colorismo e seus efeitos. A obra atualiza as formas pelas quais a mídia propaga ideais de beleza atrelados à pele (mais) clara, mostrando como esse fenômeno segue firme.
O romance é curto, mas poderoso. É sobre colorismo, mas sobre muito mais do que isso. É sobre trauma, sobre a mulher do século 21, sobre decisões, arrependimentos e sobre cura. Como era de se esperar, é também sobre amor. Lula Ann Bridewell, a protagonista Bride, é uma mulher de sucesso profissional, alguém que criou uma marca pessoal. Bride, no entanto, é alguém que tem dificuldade em encontrar o amor em sua vida. Sua mãe, Sweetness, e seu pai negaram-lhe o amor desde seu nascimento, pois o casal sentia repulsa de sua própria filha. A razão era a pele negra escura da garota, muito mais escura do que a pele de seus pais. Sweetness criou a filha sozinha depois do abandono do marido. A ferida é infligida no tratamento: ela sempre restringiu Bride a chamá-la de Sweetness e não de mãe.
O romance trata da vida da Bride adulta sem deixar de trazer os traumas que a mulher traz consigo de sua história difícil. Aprendemos sobre as decisões que Bride tomou e pelas quais sente um grande pesar e, aos poucos, a relação entre presente e passado na trama se delineia. O romance é sobre amor e sobre cura, e é também sobre como seguimos em frente.
As críticas predominantemente elogiaram o trabalho de Toni Morrison em Deus ajude essa criança. Porém, algumas negativas se fizeram presentes – e repetitivas. Sobretudo a crítica ao desenvolvimento fraco dos personagens. Acertadamente, muitos críticos não encontraram nos personagens o desenvolvimento suficiente para os fazer humanos completos. Como se interpretassem papeis, a maioria deles não é marcante. A leitura confere grande caracterização apenas a Bride, Sweetness e Booker, rapaz que Bride conhece ao longo da trama. Ainda assim, Deus ajude essa criança é um romance muito bom. Uma obra escrita para fazer o leitor imergir na linguagem de Toni Morrison.
Confira também o décimo romance da autora, Voltar para casa, também traduzido por José Rubens Siqueira e também publicado pela Companhia das Letras. Enquanto aguardamos o próximo lançamento de Toni Morrison, fazemos uma retrospectiva
DEUS AJUDE ESSA CRIANÇA | Toni Morrison
Editora: Companhia das Letras;
Tradução: José Rubens Siqueira;
Tamanho: 168 págs.;
Lançamento: Julho, 2018
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