Há escritores que escrevem para inventar mundos. E há os que escrevem para tentar sobreviver ao próprio. Édouard Louis pertence a este segundo grupo. Desde O Fim de Eddy (trad. Marília Scalzo), publicado originalmente em 2014, o autor francês transformou a dor de sua origem em matéria literária, criando uma das vozes mais intensas e desconfortáveis da literatura contemporânea. O que começou como relato da infância de um menino diferente, humilhado por ser quem é, se tornou um projeto de vida — e de resistência. Em Mudar: Método (trad. Marília Scalzo), lançado alguns anos depois, Louis retoma a própria história, mas agora com a distância e a lucidez de quem tenta compreender o preço de ter escapado.
O Fim de Eddy é um livro sobre o aprisionamento. Ambientado numa pequena cidade operária do norte da França, ele expõe um ambiente sufocante, dominado pela pobreza, pelo desemprego e por uma masculinidade feroz. O jovem Eddy Bellegueule — nome que o autor ainda carregava — é o corpo estranho nesse universo. Sua voz fina, seus gestos, seu modo de olhar o mundo o tornam alvo constante de violência e escárnio. Tudo nele é visto como erro a ser corrigido. Louis narra essa experiência sem sentimentalismo, com uma linguagem direta, quase clínica, que confere à narrativa um tom de denúncia. O que poderia soar como confissão individual se torna retrato social: um espelho da França que ficou para trás, abandonada pelo progresso e entregue ao ressentimento.
A literatura, nesse primeiro livro, surge como uma forma de fuga. Escrever é a única maneira de Eddy escapar daquilo que parecia inevitável: tornar-se mais um entre os derrotados de sua aldeia. A escrita é, ao mesmo tempo, testemunho e gesto de libertação. Mas o que Mudar: Método revela é que toda fuga carrega suas sombras.
No segundo livro, o narrador — já reconhecido como Édouard Louis — revisita o passado não apenas para compreendê-lo, mas para analisar o processo de transformação que o distanciou de sua origem. “Mudar”, aqui, não é uma metáfora. É método, é disciplina, é luta contra tudo o que o marcava como “de fora”: a linguagem, o corpo, os gestos, o sotaque. Louis descreve, com brutal honestidade, a tentativa de apagar os traços de sua origem popular para ser aceito pela elite intelectual parisiense. A mudança, percebe-se, foi também uma forma de violência. Libertar-se custou caro.
O tom de Mudar: Método é menos o da denúncia do que o da consciência. Louis já não é apenas o menino que sofreu; é o homem que tenta entender o que se perdeu no caminho. A vergonha, a culpa e a necessidade de pertencer se misturam numa escrita que é, ao mesmo tempo, ensaio, confissão e análise sociológica. Ao contrário de tantos autores que romantizam a ascensão, ele reconhece o paradoxo de quem conquista o direito de falar às custas de quem ficou sem voz. Sua literatura, nesse sentido, é uma forma de restituição: uma tentativa de devolver humanidade às vidas reduzidas à estatística da pobreza.
Entre O Fim de Eddy e Mudar: Método, percebe-se também uma mudança de tom. Se o primeiro livro é urgente, escrito com a respiração curta de quem precisa dizer tudo de uma vez, o segundo é mais contido, mais ensaístico. Louis reflete sobre o próprio ato de escrever, sobre o modo como a memória se organiza, sobre o risco de transformar pessoas reais em personagens. É um autor consciente de que a autobiografia é sempre uma construção — mas também alguém que acredita no poder transformador da palavra. Em Mudar: Método, ele se pergunta não apenas o que viveu, mas o que fazer com o que viveu.
Há algo de profundamente político na literatura de Édouard Louis, embora ele nunca se resuma a slogans. Sua obra dialoga com a de Annie Ernaux, que também faz da experiência pessoal uma leitura das estruturas sociais. Como ela, Louis escreve o íntimo para revelar o coletivo. Mas há nele uma intensidade própria, uma urgência que vem do corpo. A sua escrita é um grito controlado: uma raiva que se transforma em lucidez. “Escrever”, disse certa vez, “é impedir o mundo de mentir sobre o que ele faz conosco.” É essa a essência de seu projeto.
Entre O Fim de Eddy e Mudar: Método, percebe-se também uma mudança de tom. Se o primeiro livro é urgente, escrito com a respiração curta de quem precisa dizer tudo de uma vez, o segundo é mais contido, mais ensaístico.
Ler O Fim de Eddy e Mudar: Método em sequência é acompanhar uma trajetória de libertação que não tem final feliz — porque a ferida, mesmo transformada em arte, continua aberta. O menino humilhado sobreviveu, sim. Tornou-se escritor, figura pública, intelectual. Mas carrega a culpa de quem sabe que não se muda de classe sem deixar rastros, e que cada conquista carrega um eco de abandono. É justamente esse desconforto que dá profundidade à sua obra.
A literatura de Édouard Louis não oferece consolo. Ela expõe, desmonta, incomoda. Ao narrar sua própria história, ele revela as engrenagens invisíveis que produzem exclusão e vergonha. Sua escrita é, ao mesmo tempo, ferida e remédio. E talvez seja por isso que nos atinge com tanta força: porque nasce do reconhecimento de que mudar é possível — mas nunca simples, nem sem custo.
Em O Fim de Eddy, o menino tenta escapar. Em Mudar: Método, o homem tenta entender o que aconteceu com aquele menino. Entre um e outro, há a escrita — esse território onde a dor se transforma em forma, e a vida encontra, finalmente, um modo de dizer-se.
O FIM DE EDDY
Editora: Todavia;
Tradução: Marília Scalzo;
Tamanho: 160 págs.;
Lançamento: Outubro, 2025.
MUDAR: MÉTODO
Editora: Todavia;
Tradução: Marília Scalzo;
Tamanho: 240 págs.;
Lançamento: Fevereiro, 2024.
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