A arte passa por maus bocados. Em meio aos cortes e contingenciamentos, os artistas tentam se reposicionar na cena, buscando escapar do ar de marginalidade que o atual governo impõe à classe. O escritor porto-alegrense Michel Laub – escolhido pela Granta, em 2012, como um dos melhores autores brasileiros – é uma das vozes nesse turbilhão de protestos, atos e mobilizações em defesa da cultura e da viabilização de produções para além dos patrulhamentos de todos os tipos e modalidades.
Nesse cenário, cada mais distópico, Laub enxerga na literatura um antídoto contra o discurso extremado e enviesado, algo que, em certa medida, já estava presente em Diário da queda e A maça envenenada, mas permeou os personagens de Música anterior, seu romance de estreia, e O gato diz adeus. “É uma catástrofe de longo prazo que já está contratada nas áreas mais importantes para o futuro, como educação e meio ambiente”, afirma. Em seu livro mais recente, O tribunal da quinta-feira, aborda as relações, e suas inflexões, mediadas pelas redes sociais e o efeito da desumanização dos relacionamentos. A distorção de percepções e opiniões é, para Laub, o que levou Bolsonaro ao Planalto sem – ao menos de início – apoio da imprensa e das elites, que tiveram papel decisivo, sobretudo, na eleição de Collor e Fernando Henrique Cardoso. “O candidato da elite brasileira só virou o Bolsonaro na última hora”, avalia.
Em entrevista exclusiva para a Escotilha, Michel Laub comenta sobre os possíveis caminhos a serem tomados para contornar esse momento de crise – econômica, cultural e identitária – e de apatia das instituições.
Escotilha » Em O tribunal da quinta-feira, de 2016, você discute a ideia de rede social como reflexo da sociedade, mas também como instrumento de manipulação e manobra. Passados três anos, testemunhamos a influência do Facebook e WhatsApp no resultado das eleições brasileira e norte-americana. Por que as pessoas se deixam fascinar pelo universo – muitas vezes inverossímil – construído na internet?
Michel Laub » Essa tendência não foi inventada pela Internet. Até em termos evolutivos o ser humano está condicionado a pensar por vieses. O que as plataformas digitais fizeram, especialmente o WhatsApp por questões de sigilo, linguagem e alcance, foi dar ferramentas para que isso ficasse mais visível. Juntando ao momento econômico brasileiro e mundial, além de outros fatores (como a ascensão do discurso religioso), deu no que deu nos últimos anos.
E qual o papel da imprensa nesse processo de desvalorização dos fatos e da verdade?
A imprensa também tem seus vieses, mas não trato tudo como uma coisa só. Se você pega o exemplo do governo Bolsonaro, acho lamentável o apoio ou omissão de alguns órgãos, seja desde o início, seja na parte final da campanha de 2018. Também discordo da cobertura que ainda insiste em tratar este governo como se ele expressasse um conservadorismo que respeita as convenções democráticas (nunca respeitou). Mas é a imprensa, também, que repercute denúncias consistentes contra o bolsonarismo, porque pode bancar os custos altos da boa reportagem. De qualquer modo, o antigo poder imbatível de jornais e televisões foi relativizado com o surgimento nas redes. Uma campanha competente de manipulações no Whatsapp, como foi a do atual bando no poder, prescinde de boa imagem nos noticiários (e de partidos, e de estrutura física, e de horário eleitoral gratuito, enfim).
Esse respaldo da impressa para candidatura do Bolsonaro lembra o apoio dado à Ditadura Militar e que depois gerou um dos mea culpa mais hipócritas. Que lição não aprendemos para deixar isso repetir?
Não sei se o resultado da eleição poderia ser revertido depois de fatos inesperados como a facada, mas não há como apagar a responsabilidade da elite (com parte da imprensa incluída) pelo que aconteceu com o país. O governo é uma catástrofe previsível em praticamente todas as áreas. Vai ser difícil nos próximos anos dialogar com quem contribuiu, por ação ou omissão, ignorando todos os sinais óbvios, para que isso acontecesse.
Como reflexo de todo esse cenário, a cultura tem enfrentado tempos difíceis, de desvalorização e de inúmeras tentativas de desconstrução da Arte. O que cabe ao artista fazer, sobretudo ao escritor, para frear essa onda conversadora que se alastra?
O cerco aos mecanismos de financiamento da cultura, que é só outra expressão da boçalidade em voga no país, é um problema que deve ser debatido e combatido. Eu apenas separaria a esfera cultural (que é a da regra, segundo uma formulação célebre do Jean-Luc Godard) e a esfera artística (que é a da exceção). A arte seguirá existindo porque nunca dependeu de contextos políticos positivos para florescer, pelo contrário muitas vezes. Nesse sentido, e num paradoxo apenas aparente, ela até ganhou importância nos últimos anos, vide debates como o da nudez nos museus. Isso deu uma centralidade ao papel do artista que não existia no Brasil há décadas.
Porém, esses debates envolvendo a nudez nos museus e o financiamento artístico têm uma relação muito mais intrínseca com aparelhos ideológicos que com a produção da Arte em sim, não?
Sim e não. A arte não surge fora de um contexto, e esses episódios são sintomas da época em que a gente vive. Nos anos 90/2000, por exemplo, seria ridículo pensar que alguém fora do meio artístico ainda se incomodava com o que está ou não está exposto num museu. Então, qualquer criação hoje parte desse ponto, nem que seja para negá-lo/ignorá-lo. Quanto ao financiamento, às vezes não é só uma questão instrumental. Uma arte industrial como o cinema simplesmente não existe sem algum tipo de mecenato, público ou privado.
Qual a legitimidade dessas pessoas alheias ao meio artístico que reivindicam o direito de se intrometer no que cria um artista?
Ninguém tem direito de se intrometer na criação de um artista. Todo mundo tem direito de opinar sobre essa criação depois que ela vem ao mundo. A qualidade dessa opinião é outra história. Assim como o meu direito de ignorar o filistinismo do qual essas pessoas costumam se orgulhar.
A outra ponta dessa relação entre Arte e público é o alinhamento de tendências e discursos. Apesar de estar longe de ser um grande filme, Green Book levou o Oscar mais cobiçado neste ano. A escolha parece ser muito mais pautada no tema que na qualidade final do longa. Qual o perigo de uma Arte criada com base em um discurso que esteja em alta?
Sempre depende da qualidade da obra. Não dá para separar o que é dito da forma como é dito, então o assunto (esteja ou não na moda) se subordina a outros parâmetros. Achei o Green Book ruim não porque ele pegou carona num tema relevante, digamos e sim porque fez isso ignorando o que há de mais interessante no debate sobre o racismo, e com um roteiro tecnicamente tosco. O fato de ter sido premiado é motivo de espanto (ou não deveria ser, dado o citado filistinismo geral).
Falando um pouco da sua obra. À época do lançamento de Diário da queda, em 2011, você comentou que esse era o seu melhor livro e que havia encontrado a sua voz. Durante a sua passagem por Curitiba, em 2013, no projeto “Um escritor na Biblioteca”, você disse: “Tenho 40 anos e sinto um esgotamento de mim mesmo em relação à literatura”. Como está a sua relação com a literatura? Diário da queda continua o seu favorito?
‘A arte seguirá existindo porque nunca dependeu de contextos políticos positivos para florescer’.
Toda vez que termino um livro acho que esgotei o que tinha a dizer. Com os anos passei a achar que isso é bom, sinal de que dei tudo o que tinha a dar nas circunstâncias da produção daquele livro. Mas a coisa renasce justamente quando você olha com alguma distância para o próprio trabalho. Volto a ter vontade de escrever para fazer melhor do que fiz no passado. O Diário segue sendo meu preferido, sim, mas dentro dessa perspectiva da distância, de ter coisas ali que eu não faria se escrevesse hoje.
Essa sensação de esgotamento é recorrente na literatura. Salinger e Raduan Nassar são dois bons exemplos disso: dois autores monumentais que se calaram – talvez pelo contato em demasiado com os seus passados. Você, ao contrário, parece usar esse passado como ponte para o futuro. Como não cair em armadilhas nostálgicas ou de insegurança em relação aos livros que escreverá?
Não tenho como falar do que acontece com outros escritores. Cada caso de bloqueio ou desistência é específico e, pelo que observo, independe de talento. Para esses dois citados, o silêncio seguiu grandes sucessos artísticos; para outros, grandes fracassos. Quanto ao passado, tenho visto os meus livros (especialmente os mais recentes) como tentativas de leitura da realidade atual. É a partir daí que volto à memória, como material narrativo auxiliar, digamos. Acho que esse movimento sempre ganha um tom melancólico/pessimista. Então, pelo menos o risco da nostalgia me parece que não corro.
Daniel Galera, em uma newsletter publicada em janeiro, falou sobre o esgotamento da ficção realista e a impossibilidade de escrever que sente há três anos. Para você, o romance realista está com os dias contados?
Talvez a questão não seja a do realismo em si, até porque existem muitos realismos, assim como muitos gêneros que supostamente se opõem ao realismo e não garantem menos ou mais verdade em si. Tudo são convenções, a maioria delas bem velhas inclusive, o desafio é lidar com cada uma artisticamente. O que dá é para falar de um cansaço geral com a ideia da representação, ou mais especificamente da representação literária. É uma crise ampla que, aí sim, tem a ver com fatores da nossa época. A economia de atenção, por exemplo. Ou a sensação de irrelevância que todos acabamos experimentando depois de anos ou décadas fazendo ficção, ainda mais ficção brasileira. Não sei se é o caso do Galera. Eu tenho essa sensação volta e meia, há pouco passei por uma crise desse tipo, da qual estou tentando sair agora.
Então, que ainda faz o romance realista ser relevante?
Num sentido geral, tudo que tem qualidade artística segue relevante, nem que seja para um número reduzido de pessoas. A convenção usada para chegar a esse resultado, seja realista, fantástica e assim por diante, não interessa tanto. Já pessoalmente, e complementando a resposta anterior, se sentir irrelevante ou não é algo que diz respeito ao artista, ao seu momento biográfico, emocional, não à obra. Às vezes o desalento é libertador. A história da literatura está cheia de gente que um dia resolveu mandar tudo à merda e dizer o que precisava ser dito independentemente de como aquilo seria recebido depois.
Essa questão da impossibilidade – diante do poder criativo e diante do outro – me faz lembrar do Sérgio, personagem de O gato diz adeus. O silêncio dele – um escritor de um único livro – é o que o leva à loucura.
Mas aí tem a questão do personagem, é uma construção ficcional.
Sim, sim, mas eu comento sobre o Sérgio justamente no sentido da construção ficcional como um retrato da realidade, ainda que sem o compromisso de ser um axioma.
Tem o plano da realidade de quem escreve e do personagem. Nesse caso específico, é um romance com várias vozes, e a minha verdade, se dá para chama-la assim, está em algum ponto entre elas. Até por isso essas vozes tendem a ser mais enfáticas, distantes do que sou (ou acho que sou) em vários níveis.
É interessante que no romance seguinte, Diário da queda, você rompe com essa distância, alguns detalhes das vidas dos personagens cruzam com a sua própria história. Era justamente um momento em que se discutia a validade da autoficção, inclusive, tratando como se fosse algo novo. O cruzamento entre realidade e ficção, se posso chamar assim, foi uma escolha deliberada?
É um procedimento que usei antes, em livros como o Longe da Água e o Segundo Tempo. Existem várias razões para isso, uma delas é a autenticidade da voz, de você usar a linguagem de um narrador que nasceu no mesmo lugar que você, tem o mesmo gênero/idade/profissão/formação cultural, e isso soar verdadeiro para você como escritor (e por consequência, espero, para o leitor). Mas não é só por isso, claro, as escolhas temáticas e narrativas de um livro obedecem a muitos processos. Alguns são inconscientes, e não é incomum olhar para trás e ver que repeti situações e procedimentos literários em mais de um livro. Isso é a graça da coisa, inclusive, você também vai se conhecendo por meio do que escreveu. Quanto à autoficção, como todas as outras tendências/modas literárias, é algo mais externo, ao menos no meu caso. Meus livros têm algo de muito parecido entre si, e os escrevi antes dessa moda e seguirei escrevendo agora que ela parece ter passado.
Em A Maça envenenada (2013), você cria pontos de contato entre o genocídio em Ruanda e o suicídio de Kurt Cobain. Como lhe ocorreu essa relação?
Isso foi uma coincidência. Ao ler o livro de uma sobrevivente, percebi que o dia em que a guerra começou para ela (o dia em que ela se escondeu no banheiro onde passaria os 90 dias do massacre dos tutsis) foi o dia em que o Kurt Cobain se matou. A partir daí a relação entre as duas coisas – a fragilidade da vida no caso de um suicida e de uma sobrevivente – me perseguiu como ideia até que virasse um livro de ficção.
Antes de Música Anterior (2001), que você considera seu primeiro livro, publicou Não depois do que aconteceu (1998), livro de contos que é o resultado da oficina que fez com o Assis Brasil. O que lhe incomoda nesse livro?
Não tenho vergonha desse livro, foi o melhor que pude fazer naquela época. Mas eu vejo nele alguém tentando mostrar que sabe escrever, esse tipo de coisa, além de uma certa timidez em relação aos temas. Em algum grau isso também está nos meus primeiros romances, inclusive o “Música Anterior”. Com os anos, ao menos no meu caso, as duas coisas – maior domínio técnico e perda gradual do pudor – foram se juntando no que dá para chamar de voz.
O que você está escrevendo nesse momento? O que pode nos dizer sobre?
Estou tentando recomeçar na ficção. Depois do tal período de desalento, na sequência do Tribunal (2016), tentei algumas vezes: joguei fora alguns inícios de romance, a história foi mudando, mas no fundo é o mesmo livro. Sei mais ou menos o que quero dizer, mas ainda estou lutando para achar a forma de dizer. Ultimamente, acho, pelo menos a coisa começou a parar de pé nesse sentido formal.