O curitibano Otavio Linhares é um dos escritores mais singulares de sua safra. Dono de uma narrativa lúdica e explorava, o autor de O Cão Mentecapto extrapola os limites da narrativa do espaço físico da cidade – e também do livro. Sem se prender às normas e formalidade que regem a língua culta, Linhares consegue criar um texto que passeia entre seus próprios relatos e que, como não podia deixar de ser, é também seu próprio personagem.
Confira abaixo o bate-papo exclusivo que Escotilha teve com o autor.
Escotilha: Os seus livros, e em particular O Cão Mentecapto, têm um tom saudosista e nostálgico, retratando a infância, o começo da adolescência. Para você, a vida adulta é um fardo a ser carregado?
Otavio Linhares: Sinto muita falta da infância na fase adulta, da ingenuidade, do olhar estrangeiro da criança. Percebo que os adultos têm muitas dificuldades em lidar com seus desejos e anseios perante imposições que são sociais e que dentro do universo da criança não existem. Cor, credo, raça, por exemplo, são questões que para a criança não existem. Essas questões nos vão sendo colocadas dia após dia dentro de uma formatação cultural, e na forma como somos massificadamente educados muita coisa se perde. Adultos acabam deixando para trás seus sentimentos mais valiosos por necessidades que muitas vezes são falsas, por encaixes, por questões socioculturais que vão aparecendo e que cada um vai assumindo e digerindo de forma muito particular, e que, ao mesmo tempo, vão nos tirando motivos muito simples de alegria, de gozar a vida. Sempre que preciso me remeter ao mundo, primeiro me remeto ao olhar da criança. Ele é mais puro e despido de valores.
O Cão Mentecapto trata de temas do cotidiano, situações corriqueiras e encerra a Trilogia da Turbulência. A turbulência em questão é a rotina que nos consome ao passo em que amadurecemos?
O cotidiano nos estraga. Ficamos velhos dia após dia. A turbulência envolve, principalmente, nossos sistemas pedagógicos. Depende da forma como cada pessoa é criada e educada. O mundo que envolve cada um de nós. Geralmente é muito difícil crescer e amadurecer.
Nos três livros, você trata da burocracia em um tom kafkiano, aprisionador e que torna as pessoas apenas versões reduzidas de si mesmas. Essa influência me pareceu muito clara em “Casa”, conto de abertura d’O Esculpidor de Nuvens. Como é possível nos libertamos das amarras burocráticas?
A administração da vida cotidiana é um troço enfadonho e modorrento. Os sistemas de legitimação e administração da nossa vida tornam a própria vida um negócio chato de se viver. Pense no seu dia a dia. Pense no que acontece no seu cotidiano e elenque as coisas que não fazem sentido coletivamente, mas que mesmo assim existem. Sabe quando conversando em um grupo todos chegam a conclusão de que algo é inútil? Uma lei, uma forma de conduta, um certo existir no mundo, sabe? Quantas vezes me pego em conclusões do tipo “isso é mesmo necessário pra se viver?” e pensando nisso não entendo porque certas coisas existem. No fundo, tudo não passa de uma forma de controle. Como o panóptico desenhado pelo filósofo Jeremy Bentham que o Foucault vai retomar na década de 1970.
Você usa a figura do primeiro cigarro como metáfora para amadurecimento. Qual é a importância desse momento para você?
Tem a ver com o rompimento dos limites. Essa coisa que eu tô falando das pedagogias e dos sistemas educacionais nos colocam tantas amarras, que uma criança ou um adolescente só tem a possibilidade de dar voz a seus desejos se romper com o estabelecido, com aquilo que lhe é imposto. Catar o cigarro do chão e dar uma tragada é, ao mesmo tempo, um desejo que brota das entranhas e também um rompimento com o estabelecido. Imitar a figura amada, no caso a figura do James Jean, praquela criança é tornar-se adulta e poder dar vazão a seus desejos.
‘A literatura pra mim sempre foi a válvula de escape. A libertação. A possibilidade de conquista do infinito, do impossível.’
No texto que encerra O Cão Mentecapto – por sinal, um conto é homônimo a um relato do Cortázar –, você brinca com a noção espacial do livro. Quais as possibilidades lúdicas da literatura?
O fim de jogo na verdade veio do Beckett. Conheço o texto do Cortázar, mas a referência sempre foi o Beckett. Tá no primeiro conto a ideia de que o ser humano é apenas um lóque se equilibrando numa corda esticada ao chão achando que é um exímio acróbata no alto de um prédio. Tá no prefácio do fim de partida essa ideia. A literatura pra mim sempre foi a válvula de escape. A libertação. A possibilidade de conquista do infinito, do impossível. Quando uma coisa não funciona no real, funciona nas palavras postas no papel. Postas e dispostas de formas variadas e ilimitadas. Tão ilimitadas que cada um, num processo rizomático, faz daquilo o que bem quer. E na vida não é bem assim.
Falando ainda dos limites da literatura. Você transgride os gêneros e cria que não precisam se encaixar em convenções. Isso é uma necessidade ou sua narrativa converge naturalmente a essa ruptura?
É uma necessidade e ao mesmo tempo uma pesquisa estética. Estética no sentido de existir no mundo. Escrever dessa forma me faz sentir a vida pulsando dentro do corpo. Não me importo com gêneros e restrições. Muito pelo contrário. Não sou eu que mando. Se as coisas acontecem assim é porque devem acontecer assim. É uma resposta ao mundo. A única forma possível das coisas acontecerem através de mim. É um processo autoral e muito específico. É uma luta constante. Fazer diferente. Não repetir os antepassados. Usar o que já foi feito como catapulta pra uma coisa nova nascer pra renovar o ser humano. Pra dar mais gás pra seguir em frente.
Alguns de seus contos passeiam nos outros livros – e isso é muito interessante. Por exemplo, “O Cão Mentecapto” é um relato que está em Pancrácio, mas que faz parte também do volume ao qual dá título. Como surgiu essa ideia de fazer um texto transitar entre suas obras?
O primeiro livro, Pancrácio, era apenas a novela do início, mas aí o Leprevost revisando o texto virou pra mim um dia e falou que tinha de ter umas coisas no fim, tipo um livro que ele tinha lido que eu não me lembro. Paulo Henriques Britto ou João Gilberto Noll, talvez. Enfim. Ele disse “bóta lá uns textos mais recentes. Coisa nova. Pras pessoas verem pra onde tá indo tua literatura”. Na hora curti pra caralho a ideia e meti no fim alguns textos que eu já tava desenvolvendo pro projeto seguinte, que era O Esculpidor de Nuvens. Depois, pensando melhor, vi que essa conexão era interessante tendo em vista que os três livros estariam conectados por um mesmo fantasma, que é o narrador principal em todas elas, mas em idades diferentes.
Nesse sentido, sua escrita é enxuta e despida de pontuação de perfumaria. Por que essa escolha?
Essa foi a parte mais difícil do processo. Antes do Pancrácio eu já tinha escrito umas mil páginas de umas estórias do detetive Linhares. Eram estórias engraçadas e tal, mas que esteticamente dialogavam com textos já conhecidos da grande literatura. Eram textos de fã. Textos ainda muito simplórios que imitavam procedimentos usados por grandes escritores. Rubem Fonseca, Pedro Juan Gutiérrez, Antônio Lobo Antunes, e por aí vai. Lia os caras e queria ser igual eles. Não funciona. Artisticamente não funciona. Não dá pra querer fazer um troço que já foi feito e que todo mundo conhece. Eu precisava dar um salto pra algum lugar onde ninguém tinha saltado. Pelo menos dentro do que eu conhecia de literatura. Então comecei a procurar novos procedimentos.
Aí, nessa época abriu o Núcleo de Dramaturgia do Sesi com a coordenação do Roberto Alvim, que é um dramaturgo e diretor que tem um teatro lá em São Paulo. Com o Alvim a coisa mudou drasticamente de figura. Ele nos apresentou textos dramatúrgicos de diversos autores de diferentes épocas e lugares do mundo e sempre com a premissa de que cada autor deveria encontrar sua voz autoral. Então tudo o que era escrito era lido e criticado pelos alunos e ali foi possível ver como os meus procedimentos eram imitativos ou gastos.
Durante três anos fiquei buscando uma forma de expressar no papel algo que fosse interessante, pelo menos pra mim. Foi aí que saquei que o uso das pontuações na minha literatura tornava os meus textos lentos e chatos. Explicativos demais. Talvez um velho vício ainda dos tempos acadêmicos. Aí fui experimentando e errando, experimentando e errando, até perceber que o problema eram as vírgulas. Elas deixavam os textos lentos e explicativos demais. Então saquei fora as vírgulas. E foi aí que nada mais funcionou. Porque não bastava sacar as vírgulas. Era preciso tornar as frases interessantes. A poesia foi quem me ajudou bastante nessa hora. O formato poético e musical das frases. Foi aí que entendi que uma palavra tinha de puxar a outra causando uma necessidade de existência da frase. Daí pra compor um livro inteiro foi mais três anos de pesquisa.
Quando você escreve pensa na formatação em livro ou o objeto físico é mera formalidade à qual cabe o texto?
Tudo vale na hora de por o texto no papel. Não é o cérebro que escreve, no sentido de racionalizar o processo. A dramaturgia me ensinou que se você precisa deixar um espaço em branco pra que o leitor sinta o espaço que há entre uma coisa e outra, então você deve deixar o espaço em branco e criar esse respiro. Essa é a questão estética de cada pessoa que escreve ou compõe uma obra no sentido artístico. Essa demanda é muito pessoal e não tem explicação. Lembro que uma vez alguém me disse assim: “quando não for mais possível escrever, coma o papel”. Acho que tem a ver com isso. Não ter medo de fazer e não querer agradar ninguém. Ler o texto em voz alta pra mim, por exemplo, ajuda bastante a entender a musicalidade das palavras pra saber se elas estão bem encaixadas ou não. Se dá tesão falar e ouvir o texto, então dá tesão lê-lo.
Em Pancrácio, você diz que “a guerra é a mãe de todas as coisas”, o que me remeteu a um trecho de “A Canção do Senhor da Guerra”, da Legião Urbana (“uma guerra sempre avança a tecnologia…”). Seria a existência a busca constante e inalcançável da paz consigo e com os demais?
Não sei. Pra mim, o conflito funciona como forma de expressão. Gosto do conflito, da vivência, da experiência no corpo das situações que transcrevo. É preciso romper o metron. Romper a estrutura estabelecida, o tradicional. Alcançar níveis jamais vistos ou sentidos. Se dispor ao desconhecido. Ouvir a voz demoníaca que sussurra na intimidade isolada e surda de cada um. Se colocar no lugar do outro. Habitar outras intimidades. Habitar o outro. Pode parecer horrível todo esse processo, em princípio, e talvez seja. Mas o que pode parecer horrível muitas vezes é um exercício de amor. Fazer arte é um exercício de amor ao outro.
SERVIÇO | Lançamento de ‘O Cão Mentecapto’, de Otávio Linhares
Onde: Arte & Letra | Alameda Dom Pedro II, 44 – Curitiba/PR;
Quando: Sábado, 06 de março;
Quanto: Entrada gratuita / Livro: R$ 36,00;
Mais informações: Evento no Facebook.
ESCOTILHA PRECISA DE AJUDA
Que tal apoiar a Escotilha? Assine nosso financiamento coletivo. Você pode contribuir a partir de R$ 15,00 mensais. Se preferir, pode enviar uma contribuição avulsa por PIX. A chave é pix@escotilha.com.br. Toda contribuição, grande ou pequena, potencializa e ajuda a manter nosso jornalismo.