Conhecido como o principal veículo sobre literatura no Brasil, o Rascunho chega à maioridade no próximo ano. Ao longo de 17 anos, o jornal, fundado pelo jornalista, editor e escritor Rogério Pereira, se consolidou como um dos principais espaços de divulgação e de análise da produção literária contemporânea, acompanhando de perto a carreira de autores como Michel Laub, Daniel Galera, Milton Hatoum, nomes que se tornariam fundamentais nas letras brasileiras.
Para dar continuidade a esse trabalho, o Rascunho lançou semanas atrás uma campanha de financiamento coletivo no Catarse, que tem como principal objetivo reestruturar o departamento comercial, realizar melhorias no site e ampliar o número de páginas.
Escotilha conversou com o editor Rogério Pereira a respeito das mudanças e dos novos planos para o Rascunho.
Escotilha – O que é ser um veículo impresso no Brasil sobre literatura? O que mais mudou nesse cenário desde a fundação do jornal 2000?
Rogério Pereira – Eu não gosto muito da ideia de resistência – que é algo que as pessoas sempre me falam em relação ao Rascunho, apesar de ser um espaço de resistência se você levar em consideração que o país é tomado de pessoas que dão as costas para a cultura. A cultura não está no centro de nenhuma grande discussão no Brasil. Na verdade, ela até está se você pegar a cultura popular, o carnaval e várias manifestações culturais que fazem parte da vida das pessoas, muitas vezes, sem que se deem conta. Uma discussão sobre isso é outra questão, o que requer uma reflexão.
As pessoas não têm a menor ideia do que seja a literatura, além de a palavra ser completamente estranha. As pessoas não discutem literatura e não estão interessadas em literatura. E por quê? Há duas coisas que as pessoas tendem a confundir. Uma coisa é a literatura e outra coisa são os livros. São coisas muito distintas. Uma coisa é uma livraria, outra coisa é uma loja que vende livros. Nesse sentido, você separar o mercado editorial e a literatura é uma coisa boa a se fazer. Se parar para pensar o mercado editorial brasileiro, ele é relativamente aquecido. Nós temos boas livrarias, durante algum tempo tivemos – e agora voltamos a ter – grandes compras do governo. As pequenas e as grandes editoras vivem, ou viviam, muito bem dessas compras governamentais.
‘As pessoas não têm a menor ideia do que seja a literatura, além de a palavra ser completamente estranha.’ Rogério Pereira
Por outro lado, você vê as gôndolas das livrarias repletas de livros que são lidos e são comprados, mas esses livros, em geral, não têm a ver com discussão literária. Essas obras prescindem, de alguma maneira, de um caderno literário. Eles se vendem por si só e são o mercado editorial. Aquilo se movimenta e a gente não sabe como. Agora, se você pegar, por exemplo, a literatura, é uma coisa de nicho e de poucas pessoas. E isso não é ruim e acho que sempre foi assim.
As pessoas são muito nostálgicas e acho que a literatura, no Brasil, sempre foi assim. O que existe – se você pegar um jornal como o Rascunho, que é basicamente de literatura e que discute a chamada alta literatura – é uma questão de estrutura. Nós temos 17 anos e 2 mil assinantes. Isso me mostra o porquê nenhum dos grandes jornais não tem um caderno de literatura e o porquê nem neles a literatura sobreviveu. Porque a discussão literária, mesmo dentro da Folha de S. Paulo e nos outros grandes jornais, sempre foi uma coisa pequena. Ainda assim, eu acho que a literatura tem um espaço e que a discussão literária tem um espaço.
É possível fazer um jornal de literatura, é possível ter pessoas interessadas nesse debate. Não só é possível, como existe. Por isso o Rascunho e outros veículos sobrevivem e têm uma certa importância e relevância no cenário.
Falando um pouco disso que você comentou sobre o fim dos cadernos culturais. Com tantas dificuldades, e num momento em que os grandes jornais abandonaram os suplementos literários, por que insistir em projetos como o Rascunho?
Eu não tenho vontade de fazer outra coisa na minha vida. É uma questão pessoal. É um projeto de vida. Eu tenho um apreço pela literatura, gosto e acho que ela seja importante, assim como acho importante as bibliotecas. Acho que pessoas precisam ler. Não sei exatamente o porquê as pessoas precisam ler, mas elas precisam descobrir que a literatura pode fazer parte da vida delas. Acredito e trabalho para que isso aconteça e, claro, fazer um jornal de literatura me dá uma satisfação pessoal. Eu poderia fazer um jornal de outra coisa. Eu tenho essa capacidade como jornalista. Então, por que fazer um jornal literário? Porque eu acredito que existem, e vão existir sempre, pessoas muito interessadas na literatura. Então, é possível, mesmo com muita dificuldade, viabilizar um projeto que seja voltado para a literatura. Não é uma terra arrasada.
Se você pensar que nós temos [no Brasil] 200 milhões de habitantes, quantas pessoas dessas são leitoras ou se interessam por literatura? Muito poucas. Esse pouco que se interessa viabiliza um projeto como o Rascunho, que é independente e tem uma série de características, que tem pessoas que trabalham de maneira voluntária para que ele se mantenha. Eu continuo o Rascunho porque eu gosto muito e acredito, se eu não acreditasse, obviamente, eu não faria, mas além disso, é possível manter o projeto do ponto de vista comercial e venho mantendo há 17 anos – com dificuldade e com muitas fragilidades.
Recentemente, surgiu a 451, uma revista também especializada em literatura. Isso mostra que ainda existe espaço para discussão da literatura ou é mais um desejo utópico?
O Paulo Werneck e a Fernanda Diamant têm uma visão um pouco diferente. A 451 não é uma publicação sobre literatura, mas sobre livros. Eles percebem que existe um mercado editorial, que existe um público consumidor desse mercado e das boas livrarias. Se você pega uma edição da 451, e eu tenho acompanhado desde a primeira, a quantidade de livros de literatura é menor que os outros livros que estão ali. Os editores estão apostando em uma discussão sobre livros de economia, história, antropologia, filosofia e de literatura. É uma aposta e é uma questão editorial que eles definiram muito bem.
A revista chegou com apoio da Piauí e isso é bom. As chance de a 451 sobreviver, não sei se por um longo tempo, são grandes. Porém, eu não a incluo entre as publicações de literatura – nas quais eu cito o Rascunho, o Suplemento Pernambuco, o Suplemento Minas Gerais, o RelevO, o Cândido, que são realmente voltados para a literatura. As pessoas falam da Ilustríssima da Folha, mas não é. Esse é um caderno de pensamento, ideias. A 451 é uma publicação muito bacana que fala de livros.
O mercado editorial brasileiro cresceu bastante de 2010 para cá. Como isso afeta as publicações jornalísticas sobre literatura?
Acho que para o Rascunho não afeta nada. As pessoas falam que o livro é caro, mas se você sai no final de semana e bebe duas cervejas – dependendo do preço da cerveja – você toma três livros. É uma questão de que as pessoas sempre têm uma desculpa para se afastar dos livros. A primeira é a falta de tempo, que é uma mentira. Você desconstrói a falta de tempo em um minuto de conversa. Dá para ler no ônibus ou em qualquer outro lugar. A falta de dinheiro também. A pessoa faz muitas outras coisas com o dinheiro e que também não eram vitais – porque ela acha os livros não são vitais.
Agora, no mercado, a questão da crise das editoras não afeta o Rascunho. Afeta, claro, na renovação das assinaturas, e eu sinto que houve uma redução por conta da crise. Eu recebi, e continuo recebendo, muitos e-mails de pessoas dizendo que gostam muito do jornal, mas que não podem renovar. É muito comum que alguns assinantes não renovem em determinado período e depois retornem. Fica muito claro que aquele é um momento de instabilidade financeira. E o que se vai cortar? O jornal de literatura não é vital.
Essas questões de mercado editorial não afetam o Rascunho porque as pessoas que assinam ou leem estão interessadas em literatura. É aquela pessoa que não compra o livro, mas vai na biblioteca e empresta o livro. São pessoas que gostam da leitura. Elas prescindem de outras coisas para comprar um livro.
O Rascunho nunca foi, de maneira alguma, privilegiado pelas benesses do mercado, pelas grandes editoras, nunca teve um grande peso para anunciantes, nunca vendeu em livraria. Nós nunca participamos do mercado: sempre estivemos à margem, correndo atrás de leitores, de assinantes. Nós temos 17 anos e toda semana tem alguém que descobre o Rascunho, manda e-mail ou entra no Facebook e no Instagram e diz: “nossa, só agora eu descobri o jornal”. Isso nos dá a certeza de que temos campo ainda. Se nós tivéssemos 5 mil assinantes seria perfeito, isso nos bancaria a questão estrutural e financeira muito bem. E o que são 5 mil pessoas em um país de 200 milhões de habitantes. Não é nada.
Em certo ponto, a literatura ainda é vista como supérflua, desnecessária. E isso tem a ter com o preconceito também.
Tem a ver também com o desconhecimento em relação ao Rascunho. E tem uma coisa que temos que ver que é importante ressaltar: nós temos um site que é completamente aberto. Mesmo que a edição de agosto vá para o site apenas no final do mês, como o conteúdo é atemporal não faz diferença. Isso tira um pouco do nosso leitor do papel. As pessoas muitas vezes não assinam, e isso é uma questão importante, as pessoas que estão na literatura muitas vezes prescindem de ler uma resenha, uma entrevista. Elas se dedicam à leitura do livro, veem muito en passant nas redes sociais o que está acontecendo, os lançamentos, quem está fazendo o quê, quem está dizendo o quê e acaba se informando assim.
‘Se as pessoas passassem menos tempo nas redes e tivessem mais tempo de ler seria melhor para elas mesmas.’ Rogério Pereira
Muitas pessoas que são boas leitoras, e conheço muitas, não estão interessadas em ler um jornal de literatura porque querem ler livros.
Considerando a equação da presença do Rascunho das mídias versus a tiragem do jornal, por que ainda existe resistência de os seguidores se converterem em leitores pagantes e assinantes?
Já está comprovado de que quanto melhor for o nosso trabalho nas redes sociais, melhor será o resultado das nossas assinaturas em papel. E isso acontece por motivos óbvios. Você conhece o jornal, a gente faz uma coisa legal, aquilo se propaga e um dia a gente emplaca alguma coisa e a pessoa percebe que precisa assinar. Se não houver esse movimento nas redes sociais nada acontece.
Eu sou muito favorável a ter rede social forte, a ter site, porém, por outro lado, não converte porque – e essa é uma opinião minha – a maioria das pessoas que estão nas redes sociais, e são leitoras, talvez esteja mais preocupada com a discussão online. Ela leu um livro e gosta de dizer que leu: está mais interessada nesse movimento social da leitura que é dar opinião. Essas pessoas não estão interessadas em ler um ensaio de 20 mil caracteres.
Nós temos 20 mil seguidores no Facebook e 13 mil no Instagram e o motivo pelo qual algumas pessoas não assinam é um grande mistério? Não, não é. Acho que elas querem fazer parte desse mundo, gostam de ler livros e se informam por ali. E elas não querem receber um jornal de papel em casa e, quando estão interessadas em um assunto, acessam o site.
Eu queria ter 30% das minhas redes sociais assinando o Rascunho, seria o mundo perfeito. Eu acho que a tendência é aumentarmos, tem uma margem grande para crescer. Por isso eu sou otimista.
E o tempo que as pessoas passam nas redes sociais é um tempo em que poderiam ler.
Eu acho isso muito estranho. Eu noto que as pessoas passam muito tempo nas redes sociais. Eu não consigo entender a questão que as pessoas têm com a comunicação permanente e intensiva. Eu acho uma perda de tempo. Se as pessoas passassem menos tempo nas redes e tivessem mais tempo de ler seria melhor para elas mesmas.
Qual o papel do financiamento na continuidade do Rascunho?
O objetivo do financiamento coletivo é muito claro. Nós fizemos o projeto para reestruturar nosso site e queremos fazer outras coisas também, como o departamento comercial. Precisamos melhorar o contato com os assinantes, o que não é difícil, mas demanda tempo. Não vendemos tantos anúncios porque não temos alguém no corpo a corpo, entrando em contato com agências e prospectando.
A partir disso, e porque as finanças do jornal não estão nada bem, resolvemos fazer o financiamento coletivo – que nada mais é que dizer: o Rascunho é importante. Uma coisa interessante da trajetória do Rascunho é que as pessoas dizem que amam o jornal, que acham interessante, mas não assinam. O financiamento coletivo é uma espécie de alerta para que as pessoas nos ajudem a tentar manter o jornal.
Eu quero aumentar o número de páginas, na verdade, voltar ao número anterior de páginas. As pessoas não lembram, mas o Rascunho tinha 48 páginas. Por conta de custos tivemos que reduzir. Eu quero muito retomar esse formato. Eu gostaria muito de ter um subeditor, mas agora é impossível. No mundo ideal, o Rascunho teria quatro pessoas – eu e mais três – e poderíamos fazer uma edição muito mais caprichada.
Você enxerga o Rascunho como um instrumento de acessibilidade à literatura?
Sim. Eu me coloco muito na figura esquálida que eu era, e ainda sou, quando adolescente. Eu ia à biblioteca para pegar o Nicolau, aquilo era muito importante para mim. Claro, eu era um propenso leitor, mas eu pegava o jornal e achava aquilo o máximo. O Nicolau era uma oportunidade, que no caso era o Estado que me entregava, e eu acredito que o Rascunho também seja uma oportunidade.
Como eu vou para muitos lugares falar de leitura, é comum encontrar com pessoas que realmente acreditam que o Rascunho é um veículo muito importante na formação. São pessoas que têm o entusiasmo da juventude e tem o Rascunho como um guia. Elas leem as entrevistas, leem os contos, querem publicar no jornal, querem participar de tudo isso. Quando o Rascunho é distribuído, mesmo quando chega para o assinante, é uma oportunidade para dar de cara com um livro que, de repente, pode ser o livro mais importante da sua vida. Isso é uma experiência que você pode oferecer para o outro. É nisso que eu acredito. A gente nunca sabe o que um livro pode fazer com uma pessoa.
Por isso eu sempre tento fazer coisas com editoras pequenas, autores desconhecidos, algo bem plural. Para que os leitores realmente possam fazer descobertas e também para que o pessoal da literatura sinta no Rascunho um espaço de generosidade – o que não significa críticas positivas, pelo contrário. Tentamos ser esse espaço de descoberta para o leitor. E outra coisa: publicamos textos que ninguém mais publica. Temos resenhas que nenhum outro jornal fez. Já peguei edições anteriores – e é muito interessante fazer essa análise – e muitas das obras que publicamos viraram nada, autores sumiram. Para a história, 17 anos não é nada, para um jornal literário é muito tempo. E tem autores que estavam começando e que o Rascunho realmente acompanhou. São apostas.
Se você pegar o Prêmio São Paulo, na categoria principal, todos os livros finalistas foram resenhados no Rascunho. Muitos dos autores estreantes também foram resenhados. O Rascunho é um veículo que realmente acompanha e discute a literatura, que está atento ao tempo e ao que está acontecendo. E isso ninguém tira do jornal. É uma pena que esse reconhecimento que nós temos não se reverta no fortalecimento financeiro. O mercado não nos diz: vocês são importantes. Para as editoras não faz diferença, mas para os autores faz. Para o escritor e para a literatura, sair no Rascunho significa ser chancelado, ser visto pelo maior veículo de literatura do país.
E por que para as editoras não faz diferença? Justamente porque as pessoas que acompanham a literatura iriam de alguma maneira comprar o livro do Michel Laub, elas estão acompanhando, já sabem. Quem chega no Rascunho está muito atento – e o Rascunho corre pelas beiradas – e para nós isso é muito importante.
Todos os anos você lê Um copo de cólera. O que essa obra de Raduan Nassar representa para você?
Esse livro me diz tudo. Como eu escolho sempre a boa literatura para ler, e às vezes eu erro, porque você só descobre a boa literatura depois que leu, com o tempo você se transforma em um leitor mais experimentado. Ler Um copo de cólera é quase um ato de agradecimento à literatura. O Raduan representa para mim o que há de melhor na literatura brasileira junto com outros autores como o Graciliano e etc. Existe um Olimpo onde eu coloco todos eles.
A questão do Raduan é afetiva mesmo. É um autor que eu descobri com as minhas próprias forças, eu cavouquei e um dia eu encontrei com ele. E a forma como o Raduan escreve e a maneira como ele trata a literatura me diz muito respeito. Ler no primeiro dia do ano, e isso já virou uma coisa folclórica, significa dizer que começa um novo ano. Tem gente que pula onda, come uva, veste branco, sei lá. Os seres humanos fazem coisas muito estranhas. Tem pessoas que me acham estranho porque eu leio o mesmo livro há 17 anos, mas aí percebem que elas também fazem coisas muito malucas (risos).
A questão de ler o mesmo livro no dia 1º tem uma coisa simbólica que é o fato de começar um outro ano no qual eu pretendo ler e fazer da literatura algo na minha vida. É como tomar café e qualquer outra coisa. Eu sou muito grato aos livros, pode parecer ridículo e piegas. Se eu venho de um mundo em que não havia livros e eu vivo no mundo de livros, foi graças ao livro. Parece mesmo uma coisa de gratidão e de vingança.