Cada um conhece uma face dela pelo menos de vista: a filósofa “pop”, assim chamada por uma parte da mídia devido ao alcance de sua produção; ou por ser uma das mentes do #PartidA, o movimento político feminista. A face em questão de Marcia Tiburi não é a ensaísta nem aquela com os pés na realidade, e sim onde essa perde suas fronteiras: a ficcionista. Só uma olhada de leve em sua trilogia íntima, composta pelos livros Magnólia, A Mulher de Costas e O Manto, publicados em 2005, 2006 e 2009, dá uma ideia do quanto ela explorou e reinterpretou para criar seu próprio mundo ficcional. Esse ano saiu mais uma ficção dela, Uma Fuga Perfeita É Sem Volta, simpático calhamaço que parece querer competir com a trilogia e cuja capa lembra de leve uma ficção anterior de Tiburi: Era Meu Esse Rosto.
Se a pessoa que conta esse livro deu à trama um nome desses, uma das primeiras coisas que se pode pensar é como se perde um rosto. “Era” não está aí por acaso, e uma pessoa pode perder quase tudo, mas logo um rosto? Essa ficção brinca o tempo todo com a forma, se não pela narração em primeira pessoa, pelo tom misto de confissão, lembranças e resgate de si, às vezes no mesmo capítulo. O narrador olha para o próprio passado como se fosse o presente, querendo ver a própria vida do lado de fora, mas conhecendo cada sensação vivida na época descrita. Funciona como uma (re)descoberta das relações consigo e com os demais, descrita com uma linguagem tão lírica quando abstrata – também responsável pelo tom poético e pela visão descrita há pouco.
Essa ficção brinca o tempo todo com a forma, se não pela narração em primeira pessoa, pelo tom misto de confissão, lembranças e resgate de si, às vezes no mesmo capítulo.
Depois de uns seis capítulos a gente pode ter a impressão de que há mais histórias dentro da principal, possivelmente um resgate interior do protagonista, graças às suas impressões sobre o que presencia. A presença de um animal de estimação, o contato com um parente, um parto (uma das passagens mais emocionantes do livro), pistas sobre sua origem; tudo direciona para um quebra-cabeça onde cada peça puxa novos quebra-cabeças, tamanha a sensação de mergulho da narrativa, às vezes até pedindo para voltar alguns parágrafos para se situar de novo na cabeça do narrador.
Não é uma bagunça proposital, apenas uma reordenação sem se preocupar com exatidão ou cronologia. Essa ficção é daquelas que captam mais pela experiência do que pela história em si, entregando poucas informações claras enquanto busca enxergar o que acontece. Talvez por um de seus temas centrais, o desenvolvimento de uma identidade, algo menos linear e claro do que um bocado de páginas, ainda mais nesse Era Meu Esse Rosto, cujo nome também poderia ser “Era Minha Essa Identidade”, e manter sua aura de dúvida e insistência na descoberta de si.