Conta a lenda que Samuel Beckett e James Joyce costumavam se encontrar frequentemente para longas conversas em silêncio. Joyce, aos cinquenta e tantos anos, era um mentor para o jovem Beckett – que quase se tornou genro do autor de Ulysses, empreitada que desistiu à medida em que a loucura de Lúcia Joyce se agravava.
A mudez, tanto das palavras quanto dos sentidos, permeia toda a obra de Beckett, se acentuando em Esperando Godot, a fábula de uma espera sem fim por alguém que nunca chega. Obra máxima do Teatro do Absurdo, escrita em 1949 e levada aos palcos quatro anos mais tarde, a peça é a síntese da expectativa pelo desconhecido e do desejo pelo desnecessário.
Em um cenário mínimo – uma árvore e uma pedra, somente –, Vladimir e Estragon descem ao inferno sem nem mesmo sair do lugar. Beckett – um estudioso de Dante – constrói uma narrativa aparentemente simples para dar voz a todo tipo de angústia e dúvida.
Ao elevar o absurdo à Arte, o irlandês esmiúça as humilhações e devastações que desumanizam o homem. Esperando Godot é uma experiência de autoexílio inconsciente. Isto porque, frente ao isolamento e à ausência extremos, Vladimir e Estragon se alijam de suas próprias identidades para ter conforto no invisível. Em alguma medida, é um relato religioso – mas também político e sexual – porque a sua base está na utopia, naquilo que jamais será alcançado.
Esperando Godot é uma obra sobre a era das fake news e das verdades fabricadas, das movimentações de massa e da esperança pelo que nunca vai acontecer.
“Vladimir rompe numa gargalhada, prontamente contida, levando as mãos ao púbis, rosto contraído.
Vladimir: Nem rir ousamos mais.
Estragon: Terrível privação.
Vladimir: Apenas sorrir. (Seu rosto abre-se num sorriso máximo que se fixa, dura um certo tempo, depois se desfaz repentinamente) Não é a mesma coisa. Enfim… (Pausa) Gogô?
Estragon: (irritado) O quê?
Vladimir Você já leu a Bíblia?
Estragon: A Bíblia…? (Pensa) Devo ter passado os olhos.
Vladimir: (espantado) Na escola sem Deus?
Estragon: Sei lá se era com ou sem.
Vladimir Deve estar confundindo com La Roquette.
Estragon: Pode ser. Lembro dos mapas da Terra Santa. Coloridos. Bem bonitos. O mar Morto de um azul bem claro. Dava sede só de olhar. É para lá que vamos, eu dizia, é para lá que vamos na lua de mel. E como nadaremos. E como seremos felizes.
Vladimir: Você devia ter sido poeta.
Estragon: E fui. (Indicando os farrapos com um gesto) Não está na cara?”
Como em Fim de partida, Beckett faz uma ode ao abjeto, àquilo que seria descartado pelas mentes sãs. “Prefiro Paris em guerra que a Irlanda em paz”, disse – assim que a Segunda Guerra começou. Muito mais que um exemplo certeiro do humor ácido e perspicaz do autor, a frase retrata a obsessão de Beckett pelo caos e pelo inominável. Textos para nada e Murphy dão a medida dessa caçada sem fim e da necessidade de trazer à tona o indesejável.
Essa narrativa de impasses e impossibilidade é o retrato certeiro do esgotamento contemporâneo, em que tudo está às mãos e, em simultâneo, está perdido para todo sempre como num quadro de Hooper. Ao mesmo tempo, Esperando Godot é uma obra sobre a era das fake news e das verdades fabricadas, das movimentações de massa e da esperança pelo que nunca vai acontecer.
ESPERANDO GODOT | Samuel Beckett
Editora: Companhia das Letras;
Tradução: Fábio de Souza Andrade;
Tamanho: 192 págs.;
Lançamento: Setembro, 2017 (atual edição).