O jornalista Malcolm Gladwell tem um modus operandi bastante engessado dentro de seus livros: ele parte de uma tese bem delimitada, a qual amarra a partir de cases que a ilustram. No seu livro mais famoso, O ponto da virada, ele usa essa “fórmula” para discutir vários exemplos em que houve uma espécie de “salto”, em que algo poderia dar muito errado acaba dando muito certo. Em Davi e Golias, analisa temas em que alguém em situação de fraqueza usou sua vulnerabilidade como um ponto a favor.
O fato de que a fórmula se repita não torna os livros enfadonhos, uma vez que as discussões trazidas pelo jornalista costumam ser sempre muito instigantes, além de sustentadas por muitos dados científicos, e não por achismo. Por isso, toda obra nova do autor chama muito a atenção de seus leitores. Em seu último lançamento, Falando com estranhos, Gladwell se aventura em uma temática bastante provocativa: ele quer investigar de que forma costumamos imaginar que conhecemos os outros apenas de olhar para eles, mas, a partir dos capítulos da obra, argumenta o quanto este raciocínio é falacioso.
Basicamente, Falando com estranhos reflete como pano de fundo um mundo polarizado e tomado pelo dissenso, em que as pessoas não conseguem se entender. Não por acaso, o case central – a morte de Sandra Bland, três dias após ser presa por causa de uma penalidade por um erro banal de trânsito – aponta a um contexto de racismo e confronto com policiais, discussão tão em voga em tempos do movimento Black Lives Matter. A questão que tenta amarrar todas as pontas do livro, talvez, seja essa: será que de fato conhecemos uns aos outros? Afinal, temos interesse em nos conhecer, ou é mais fácil (e mesmo socialmente aceitável) andar pela vida confortado pelos nossos enganos?
A engenharia feita por Gladwell para discutir esta premissa em diferentes capítulos é, no mínimo, admirável. Ele parte de uma investigação sobre os mecanismos da mentira – sobre o quanto é difícil viver partindo do pressuposto de que as pessoas mentem e, por isso mesmo, não deveríamos nos culpar por acreditar nas dissimulações dos outros em nossa volta. Para abordar esta tese, o jornalista traz assuntos aparentemente desconectados: fala por que espiões infiltrados na CIA não são descobertos pelos seus pares; aborda a intrincada questão do consenso em encontros sexuais, principalmente regidos a álcool, sinalizando a um debate (mesmo sem dizer isso claramente) sobre os mecanismos de uma cultura de estupro; discute como a narrativa de Friends nos convenceu sobre um argumento falacioso da transparência (ou seja: de que tudo o que sentimos está expresso na nossa cara e nos nossos olhos, mas que isso é, na verdade, um grande engano que leva a muitas injustiças).
Falando com estranhos reflete como pano de fundo um mundo polarizado e tomado pelo dissenso, em que as pessoas não conhecem se entender.
O capítulo mais instigante, na minha visão, é o que parte da morte da poeta Sylvia Plath para debater o quanto o suicídio é causado por oportunidade – se alguém que esteja determinado a se matar fará isso de qualquer forma, ou se, caso as ferramentas mais eficientes desaparecessem (como as armas de fogo ou, no caso de Sylvia, o encanamento com gás carbônico nas casas da Inglaterra), os índices de suicídio diminuíram. De novo, a premissa aqui é escancarar aquilo que é pouco óbvio: que sabemos muito menos sobre os outros – e, consequentemente, sobre a vida – no que gostaríamos de acreditar.
Há muito o que se discutir sobre as obras de Malcolm Gladwell e o quanto elas podem, a um olhar mais simplista, serem chamadas de autoajuda. Penso que essa leitura seria redutora porque limitaria obras com ampla investigação jornalística a uma categoria que costuma se cercar de preconceito (e por isso mesmo, chamá-lo de autor de autoajuda seria cometer os mesmos erros que ele descreve em Falando com estranhos).
Por mais que esta obra talvez não seja a mais inspirada do autor (a premissa inicial, sobre a morte de Sandra Bland, acaba levantando um mistério que não se cumpre ao final do livro), ler um lançamento de Malcolm Gladwell é sempre um alento aos curiosos e aos inquietos. Por isso, Falando com estranhos não decepciona e traz ótimas reflexões para quem topar lê-lo.
FALANDO COM ESTRANHOS | Malcolm Gladwell
Editora: Sextante;
Tradução: Ivo Korytowzki;
Tamanho: 343 págs.;
Lançamento: Novembro, 2019.