Acredito que “Dagon”, de H.P. Lovecraft, tenha sido uma das narrativas curtas que mais reli na vida (abaixo de “A Tabacaria”, de Fernando Pessoa, e lado a lado com “Felicidade Clandestina”, de Clarice Lispector). Apesar das releituras acontecerem mais por obra do acaso, principalmente pelo fato de ser um conto recorrente e um dos primeiros nas coletâneas do autor, meu apreço pelo conto não diminuiu.
Nele, é possível ver todos os elementos de uma história lovecraftiana. Acompanhamos o último depoimento de um sobrevivente que está prestes a se matar devido à abstinência de morfina, a única droga que amortecia as dores de uma vida vivida no limiar entre a sanidade e a loucura.
Em seu relato, ele nos conta como fugiu em um bote enquanto era um prisioneiro de guerra e que, depois de dias à deriva no mar, acabou encontrando um charco podre, repleto de espinhas de peixe, que devia ter se elevado das profundezas do oceano enquanto ele estava desmaiado de calor e fome.
Ao desembarcar e caminhar por esse lugar, o narrador encontra duas coisas aterrorizantes. Primeiro, um gigantesco monólito com inscrições de uma civilização aquática em louvor a um deus ancestral. Depois, a visão desesperadora e inconcebível dessa mesma entidade gigantesca, que surge das ruínas destrói sua noção de mundo.
Sem recorrer a seres meramente sobrenaturais, como vampiros ou fantasmas, Lovecraft une o Gótico à Ficção Científica para apresentar uma nova maneira de causar medo.
Dessa narrativa emerge uma estrutura bastante comum em seus contos e que configura o que hoje como conhecemos como Horror Cósmico, um medo que surge de elementos cósmicos, da vastidão de universos ou da observação de seres que escapam da noção que temos do que pode existir.
Sem recorrer a seres meramente sobrenaturais, como vampiros ou fantasmas, Lovecraft une o Gótico à Ficção Científica para apresentar uma nova maneira de causar medo e justificar a existência de seres tão medonhos como os deuses ancestrais do seu panteão. No entanto, esse Horror Cósmico é só uma peça na construção da sua Ficção Weird.
Lovecraft não é o único escritor da Ficção Weird e nem ela é restrita ao seu estilo. Mas, como nos mostra Mark Fisher em seu livro The Weird and the Eerie, o escritor inglês acabou estruturando uma maneira bastante singular de apresentar o “estranho”. O “estranho”, derivado do Weird, é um termo de difícil tradução nesse contexto. O que Fisher apresenta é que tanto o Fantástico, quanto o Weird e o Eerie trazem o elemento do “estranho” consigo, mas cada em sua maneira.
Do Fantástico, nós já comentamos em uma antiga série aqui na Escotilha. Mas no caso Weird e Eerie, o elemento “estranho” não aterroriza, mas causa uma “fascinação pelo externo, pelo que está além da percepção, cognição e experiência padrão”. Especificamente no Weird, o estranhamento é percebido pela sensação de algo fora do lugar.
Como Fisher diz, é marcada pela percepção de alguma “entidade ou objeto tão estranho que nos passa a sensação de que não deveria existir, ou ao menos não existir aqui. No entanto, se essa entidade ou objeto está aqui, então as categorias que usávamos para dar sentido ao mundo não são válidas”. Dessa forma, o elemento estranho não está errado, mas ele revela que a nossa concepção está.
O que Lovecraft faz é mostrar um jeito único trabalhar esse elemento “estranho” ou Weird, que é apresentando entidades e deuses de um passado longínquo, em estados alterados de consciência e percepção temporal, que geralmente acabam em algum tipo de colapso mental.
Sendo assim, o horror não é o efeito principal, mas é derivado de uma espécie de fascinação paralisante que surge do encontro com o Desconhecido, que despedaça os limites da percepção, que repele, atrai e traumatiza aqueles que o observam.
Além disso, Lovecraft não é um escritor que descreve o que é “indescritível”, “inominável” ou “irrepresentável”. Fisher descreve um processo mais complexo: “Depois (1) de declarar a impossibilidade de descrição, e (2) descrever, vem a (3) impossibilidade de visualização”. Com essa impossibilidade de visualização, aumenta-se o efeito de fascínio indescritível.
É por isso que o fator humano e o espaço cotidiano são tão importantes em Lovecraft. Esse desmembramento psicológico ocorre porque o estranho surge em um espaço cotidiano, não em uma terra fantástica distante onde tudo é possível. É uma questão de escala. Por isso, em seus contos observamos esse desmantelamento de camarote – já que estamos na primeira pessoa.
Além disso, Lovecraft mescla o mundo real com o fictício com uma espécie de “retro-introdução”, fingindo que o elemento novo e estranho da narrativa já era conhecido (e a sensação de realidade causada por esse efeito é tão grande que diversas pessoas já ligaram para a biblioteca de Londres procurando uma cópia do Necronomicon). Sendo assim, se você quiser ter uma dose dessa Ficção Weird e conhecer um pouco do panteão de Lovecraft, “Dagon” pode ser uma boa pedida.
DAGON | H.P. Lovecraft
Editora: Iluminuras;
Tradução: Celso Mauro Paciornik;
Tamanho: 192 págs.;
Lançamento: Janeiro, 2015.
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