Os presentes na tarde de ontem em Paraty puderam acompanhar de perto um gracioso debate sobre vida, guerra e literatura. A mesa “De micróbios e soldados”, mediada pelo escritor Joca Reiners Terron (autor de Do fundo do poço se vê a lua; Companhia das Letras, 2010), contava com os escritores Diego Vecchio e Saša Stanišić.
Vecchio, argentino radicado em Paris, para onde mudou há 23 anos para estudar psicanálise, é autor de três obras – sendo que apenas uma delas foi traduzida para o português. Entre elas, Micróbios, livro lançado pela editora Cosac Naify na Flip 2015. O escritor começou sua participação lendo um trecho de sua obra. O mesmo fez Stanišić, bósnio, escritor de Antes da Festa (Editora Foz, 2014), que aos 14 anos deixou sua terra natal, juntamente com sua família, fugindo dos horrores da Guerra da Bósnia.
Entre piadas sobre hipocondria e afinidades entre os dois escritores, ambos falaram sobre como a guerra havia afetado suas vidas. “Eu estava em Buenos Aires durante a Guerra das Malvinas, mas vivi a ditadura militar. Havia um discurso mascarado de que as coisas estavam bem, um discurso tranquilizador. Só depois a nação tomou conhecimento do que realmente havia acontecido”, narrou Vecchio. “Foi um trauma posterior, com efeito retardado”, completou.
O papel do escritor moderno é coletar vidas e colocá-las num ambiente, fazendo com que não desapareçam.
Stanišić teve uma relação mais profunda e traumática com a guerra. O bósnio morava em um vilarejo no qual os moradores não acreditavam que o conflito chegaria, até o momento em que os soldados apareceram. O autor explicou que seu primeiro livro, Como o Soldado Conserta o Gramofone (Record, 2009), foi escrito como uma tentativa de responder às perguntas que a guerra deixou em sua vida. “Passamos a fronteira na Sérvia graças a uma piada que meu pai fez com os guardas. Ela, apesar de imprópria, foi o que permitiu que passássemos. Minha mãe tinha sobrenome árabe, certamente não teria sido autorizada a passar se revistassem o carro e pedissem nossos documentos”.
Saša Stanišić também falou sobre Antes da Festa. “Meu livro fez com que me apaixonasse por pessoas que lutam contra seu próprio desaparecimento. O papel do escritor moderno é coletar vidas e colocá-las num ambiente, fazendo com que não desapareçam”, contou o escritor, sendo aplaudido pela plateia presente.
A língua literária
A língua literária escolhida pelos autores também foi assunto abordado durante a mesa. Diego Vecchio optou pelo espanhol, mesmo morando há mais de duas décadas na França. Segundo o escritor, a escolha foi feita como uma forma de estar em contato com suas origens “sem precisar ficar 15 horas dentro de um avião pagando caro”.
Stanišić adotou o alemão por sentir-se mais à vontade. “Não consegui escrever sobre a guerra na língua da guerra. Há uma espécie de barreira. Não consigo escrever em bósnio, mesmo falando bem o idioma”, explicou.
Hipocondria e Borges
Ambos os escritores admitiram ser um pouco hipocondríacos. Vecchio disse que não sabia se já era hipocondríaco ao escrever Micróbios ou se ficou devido à escrita. “A hipocondria é uma forma de guerra entre o corpo e os micróbios, às vezes entre os próprios órgãos. Para escrever, eu tinha que ser hipocondríaco”, contou. “Hipocondríacos e escritores têm um ponto em comum: a imaginação. Ela (imaginação) pode se tornar um vírus quando escrevemos. É como adoecer por uns anos e depois a ideia nos deixa”, brincou o autor.
Sobre seu conterrâneo Jorge Luis Borges, um dos maiores nomes da literatura mundial, Vecchio fez questão de elogiá-lo, mas também sinalizou que toda a atenção dada ao falecido poeta causou certos danos à literatura argentina. “Para os escritores argentinos, Borges é um modelo muito poderoso, atraente. É como um buraco negro, nos repele e nos atrai. Ele fagocitou muitos outros bons escritores argentinos”, finalizou o autor.
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