Gabriel García Márquez é um dos autores latino-americanos mais traduzidos, lidos e apreciados pelo público e pela crítica em todo o planeta. Considerado o grande ícone do realismo mágico da América Latina, movimento que floresceu no século XX, o autor escreveu diversos clássicos da literatura contemporânea, como a obra-prima Cem Anos de Solidão e o melancólico e irresistível O Amor nos Tempos do Cólera. O complexo trabalho literário de García Márquez rendeu ao escritor colombiano o Prêmio Nobel de Literatura em 1982.
Com uma habilidade ímpar para intercalar realismo e fantasia, o reconhecível e o onírico, o possível e o impossível, García Márquez é um arquiteto de mundos extraordinários em que tais opostos coexistem em uma simbiose eterna e paradoxal. Nas mãos de um mestre do realismo mágico, o efeito final que se obtém com o uso desses elementos é o da soma maior do que as partes: o fantástico realçado pelo realismo e a realidade realçada pelo fantástico, resultando em um conjunto final que não é um, nem outro, mas que eleva o poderoso efeito artístico e literário de ambos.
Com uma habilidade ímpar para intercalar realismo e fantasia, o reconhecível e o onírico, o possível e o impossível, García Márquez é um arquiteto de mundos extraordinários em que tais opostos coexistem em uma simbiose eterna e paradoxal.
Ainda, García Márquez apresenta um dom quase inigualável para a música da linguagem, empregando um lirismo carregado de ritmo e forma que beira o poético. Por sorte, as similaridades sonoras entre o português e o espanhol nos permitem vislumbrar, mesmo em edições traduzidas, o imenso talento de um verdadeiro escritor-maestro, condutor da musicalidade natural de seu idioma.
Essas características estão em forte evidência em O Outono do Patriarca (1975), o primeiro romance que García Márquez publicou após Cem Anos de Solidão (1967), uma obra em que o escritor colombiano esmiuçou a natureza contraditória do poder e do autoritarismo na América Latina.
A fragilidade do poder
O protagonista de O Outono do Patriarca é o centenário ditador de um país sul-americano incerto, uma terra tropical e pulsante à beira do mar do Caribe. O general, como é chamado ao longo do livro (seu nome permanece desconhecido), é um homem impossivelmente velho, mais velho do que as memórias da própria população, a ponto de ser considerado eterno. Seu poder sobre a nação parece absoluto e inquestionável, e é visto por muitos como uma espécie de divindade atemporal capaz de mandar nas próprias leis da natureza.
Apesar de apresentar diversos episódios da vida do general, da infância nos páramos distantes à morte no palácio presidencial, O Outono do Patriarca não se resume apenas às experiências do ditador, mas narra a tragédia coletiva de uma nação perpetuamente explorada desde os tempos dos colonizadores europeus até a tirania de déspotas domésticos, interessados somente na perpetuação da miséria e na manutenção do poder.
De fato, o livro não possui um único narrador, mas alterna entre longas seções de narração onisciente em terceira pessoa e pensamentos e falas em primeira pessoa do velho ditador, bem como testemunhos diversos daqueles que cruzaram o caminho da mítica figura do autocrata caribenho. Desta forma, o narrador é a amálgama da própria nação, uma espécie de consciência múltipla dessa experiência coletiva de repressão social e autoritarismo.
Com humor, riqueza descritiva e um aguçado entendimento das ambições humanas, García Márquez desnuda as grandes contradições que estão no cerne dos diversos governos autoritários que já comandaram as nações latino-americanas: ao mesmo tempo fraco e invencível, restrito e onipresente, frágil e brutal, o general de idade impossível é a encarnação máxima da estupidez dos governantes ávidos de autoridade que se alternam no poder desde a época da colonização.
A beleza que há em tudo
Além da forte carga política dessa análise do autoritarismo e da herança de violência e dominação que perpassa toda a América Latina, O Outono do Patriarca é uma sucessão de episódios fantásticos centrados em personagens memoráveis e absolutamente humanas. Com uma prosa fluida e altamente sonora, García Márquez mostra-se capaz de exaltar a beleza das Américas mesmo em meio a cenas de terrível violência e subjugação.
Alguns dos melhores episódios incluem a obsessão do general pela rainha da beleza Manuela Sánchez, a miss do bairro dos pobres que resiste às suas investidas e termina por desaparecer sem deixar rastros durante um eclipse, assim como a morte brutal do comandante militar Rodrigo de Aguilar, o maior aliado do general, que acaba por ser executado por suspeita de traição e servido assado à alta cúpula do exército com recheio de amêndoas e cheiro verde em um grotesco banquete de celebração do seu poder.
Igualmente emblemático é o derradeiro ato de subserviência do ditador à eterna autoridade imperial que sobressai até mesmo à sua. Sem saída para sanar a dívida externa, o general se vê obrigado a vender o mar para os países do norte, que levam as águas embora com mecanismos fantásticos, deixando para trás apenas uma planície sem fim, torturada por relâmpagos e recoberta de pó lunar.
Esse ato final de desolação precede aquele que finalmente libertará o povo da tirania do velho e incompetente militar: a morte solitária do déspota, encontrado apodrecido em seu escritório, ainda de uniforme e devorado por urubus. Em tempos de autoritarismo, é bom lembrar que, como demonstrou García Márquez, há um fim para toda tortura, e o tempo da eternidade há também de terminar.
O OUTONO DO PATRIARCA | Gabriel García Márquez
Editora: Record;
Tradução: Remy Gorga Filho;
Tamanho: 272 págs.;
Lançamento: Maio, 1976.