Na resenha sobre Black Hammer, comentei sobre os lugares deslocados que Jeff Lemire gosta de construir em suas obras. Nesta narrativa, Lemire conta a história de seis super-heróis presos no tempo e no espaço em uma cidade interiorana e sem nome. Em uma aura intimista, os heróis são despidos da sua onipotência para que sejam humanizados e as questões sobre suas vidas se tornam mais intimistas e melancólicas.
Na cidade de Gideon Falls, que dá nome ao HQ, Jeff apresenta outro clima. Permeados pelo terror e mistério, acompanhamos a história de Wilfred, um padre problemático recém-chegado na cidade, e de Norton Sinclair, um morador de uma metrópole e que é aparentemente esquizofrênico. Norton fuça nos lixos da cidade à procura de pedaços de madeira e pregos enferrujados seguindo uma intuição dada como divina.
Separados no espaço, o que une os dois personagens é a presença do Celeiro Negro. O Celeiro é uma estrutura sobrenatural que assombra as pessoas de Gideon Falls e está ligada a diversos incidentes suspeitos na comunidade há alguns anos. Padre Wilfred é conectado com tais intrigas de maneira quase passiva, já que diversos incidentes que sucedem sua chegada o obrigam a investigar a construção. Por outro lado, ainda que distante, Norton tem visões com a estrutura e diz que Deus deu a ele a missão de reconstruir o Celeiro.
A diagramação também mostra um domínio preciso da composição dos quadros na narrativa e intensificação a sensação de fragmentação e falta de senso de direção dos personagens e a coloração psicodélica do Stewart e sua valorização do vermelho como cor de destaque também ficam em sintonia com o que foi proposto pela dupla.
Esse primeiro volume de Gideon Falls é dedicado à apresentação dos mistérios do Celeiro Negro e encerra com a insinuação de um ligação mais estreita entre os dois protagonistas. A HQ constrói uma aura de terror causado por essa tensão sobrenatural ao redor da figura do Celeiro Negro em uma cidade interiorana, tão comum na obra do Lemire. Essa espécie de tabu é reforçado com uma contraposição que Lemire faz entre Fé e Sanidade. O padre é cético, o lunático devoto. A sanidade e a insanidade permeiam as coisas que os personagens vivem e moldam aquilo em que eles vão acreditar.
Baseado em produções que Jeff Lemire realizou em sua graduação, o autor conta que uma inspiração para sua narrativa é o seriado clássico dos anos 1990, Twin Peaks, criado por David Lynch e Mark Frost. A aura conspiratória e o terror psicológico que o seriado constrói na série televisiva se aproxima bastante do que Lemire constrói em Gideon Falls.
Está presente na narrativa o tom melancólico e as reflexões mais íntimas e humanas das personagens, mas diferentemente de seus outros trabalhos mais famosos, como Sweet Tooth e O Condado de Essex, os pensamentos não surgem de maneira passiva, mas são moldados de acordo com o horror do Celeiro.
Além disso, a parte gráfica de Gideon Falls casa bastante com a proposta narrativa. A arte é de Andrea Sorrentino, que produziu com Jeff Lemire histórias de sucesso do Arqueiro Verde e o Velho Logan, e a coloração é de Dave Stewart.
Alguns quadros de Sorrentino são muito bem desenhados, mas o que chama a atenção é a distensão dos limites da narrativa. Em muitos momentos, a perspectiva e suas três dimensões são retorcidas, como no desenho mostrado abaixo, e passam o desnorteamento para a leitura.
A diagramação também mostra um domínio preciso da composição dos quadros na narrativa e intensificação a sensação de fragmentação e falta de senso de direção dos personagens. A coloração psicodélica do Stewart e sua valorização do vermelho como cor de destaque também ficam em sintonia com o que foi proposto pela dupla.
Em solo nacional, a Editora Mino se encarregou de publicar as edições do quadrinho em capa dura e com um papel que valoriza a arte – ainda que sua lombada prejudique alguns momentos da leitura. O primeiro e o segundo volume já foram publicados, mas a narrativa ainda está em andamento com previsão para o término em outubro deste ano.