A última historinha do Leste (a primeira e a segunda estão disponíveis) também foi escrita for Zbigniew Herbert e se chama “O Muro”:
“Estamos diante do muro. Arrancou-se-nos a juventude como a camisa dos condenados. Esperamos. Antes que a bala engordurada se aloje na nuca passarão dez, vinte anos. O muro é alto e poderoso. Além do muro há uma árvore e uma estrela. A árvore ergue o muro com suas raízes. A estrela rói o muro como um rato. Daqui cem, duzentos anos, haverá uma janelinha”.
Esta é outra tradução cometida por mim.
Estranha esta historinha. Fala sobre paredão de fuzilamento mas, ao final, acena com uma esperança, leve esperança. Não para aqueles cujas camisas foram arrancadas, não para os espancados, não para os torturados, mas para seus netos e bisnetos.
Herbert também nos ensinaria que, diante do pelotão de fuzilamento, devemos manter a postura ereta. Quando ensinarem as crianças a mentir, devemos manter a postura ereta. Quando o fim hediondo se mostrar inevitável, devemos manter a postura ereta e, preferencialmente, serena.
Fala sobre paredão de fuzilamento mas, ao final, acena com uma esperança, leve esperança. Não para aqueles cujas camisas foram arrancadas, não para os espancados, não para os torturados, mas para seus netos e bisnetos.
“Sê corajoso quando falhe a razão sê corajoso”, também nos ensina Herbert naquele que talvez seja um dos seus mais aclamados poemas, “A mensagem do Senhor Cogito”. Quando falha a razão, quando o Cogito nos abandona, resta a coragem.
Ainda outro poema, “O poder do gosto”, fala-nos da importância da estética, da “ciência do belo”. Chamo atenção ao seguinte trecho:
“Na verdade a retórica deles era bem reles
(Marco Túlio ter-se-ia virado no túmulo)
as cadeias da tautologia alguns conceitos como malhos
dialética de carrascos sem qualquer distinção no raciocínio
sintaxe privada da beleza do subjuntivo”.
Sim, minhas caras e meus caros, também a estética importa. E muito. É só prestar atenção às coisas e lê-las com olhos de quem lê o mundo, não com olhos baços.
Agora, as historinhas do Leste se despedem. Espero que tenham gostado e, especialmente, pensado um pouco. Não poderia encerrar, contudo, sem fazer três coisas. A primeira é lembrar que “a poesia moderna / é uma luta pelo respirar” (Tadeusz Różewicz, 1921-2014). A segunda é citar Antonim Słonimski (1895-1976): lembrem-se, por favor, de que eu fui contra. A terceira é dizer que o poema citado na historinha passada, “Baladas e Romances”, agora pode ser lido numa tradução (anos-luz) melhor, da pena Piotr Kilanowski:
Baladas e Romances
“‘Ouça menina! Ela não ouve…,
Este dia branco, esta vila mansa…’
Não há vila, viva alma não se move,
pelos escombros corre nua, a ruiva Ryfka,
de treze anos a criança.
E passavam gordos alemães, num tanque gordo.
(Vá Ryfka, fuja, corra!)
‘Papai no Majdanek, mamãe sob os escombros …’
Riu, voltou-se e sumiu lá fora.
E passava um conhecido de Lubartów, um cara bom:
‘Pegue Ryfka, para que fique boa tome um pão …’
Pegou, mordeu, com os dentes a brilhar:
‘Para o papai e a mamãe vou levar.’
Passava um camponês, jogou uma moedinha,
passava uma camponesa, também deu uma coisinha,
e passava ainda muita, muita gente
que olhava a nua e ruiva assombradamente.
E passava o Senhor Jesus doloroso,
que os SS levavam pros suplícios
puseram os dois num campo lodoso,
depois pegaram nas mãos os rifles
‘Sie Juden, ouça Ryfka, ouça Jesus,
pela coroa de espinhos, por estarem nus pelos cabelos ruivos e por sermos culpados,
à morte estarão condenados.’
E enquanto a Aleluia na Galileia ressoava,
ele e ela aos poucos anjeavam.
E o estrondo da salva se dissolve…
‘Ouça, menina!… Ela não ouve…!'”
P.S.: Os trechos de Herbert e Różewicz, exceto o traduzido por mim, constam da antologia Quatro Poetas Polonesas, publicada em 1994 pela Secretaria de Estado da Cultura do Paraná, com apoio do Consulado-Geral da Polônia em Curitiba e do Ministério da Cultura da República da Polônia. As traduções são de Henryk Siewierski (UnB) e Santiago Naud.