“Viver é algo muito raro. A maioria das pessoas apenas existe.” A frase de Oscar Wilde, dramaturgo irlandês que morreu na sarjeta após um violento escândalo sexual, parece se aplicar como uma luva ao pianista inglês James Rhodes. Dono de um talento virtuoso – e manifestado ainda quando criança –, o concertista desceu ao inferno quando Hades, manifestado em um professor de educação física, o estuprou durante as aulas por cinco anos. O trauma que causou em Rhodes, que à época do primeiro abuso tinha apenas seis anos, percorre todos os dias as suas veias, como uma doença incurável.
Como conta em Instrumental, seu livro de memórias publicado pela Rádio Londres, por muitos anos, James não viveu, somente existiu. Seu relato chocante e visceral das consequências que a violência causou ao músico é um alerta, uma advertência, para uma sociedade cada vez menos humana e mais animalesca. Como contraponto de toda essa torrente emocional, o livro é pontuado pelo amor pela música clássica – que é dessacralizada capítulo a capítulo em uma introdução pessoal e pungente, que pode ser acompanhada também pelas canções citadas por meio do Spotify.
Diferentemente do que possa aparentar, Instrumental não é um catálogo de acusações, ao contrário, é uma jornada de autoconhecimento e descoberta do mundo – sem que, para isso, tenha poupado a si mesmo da dor e do sofrimento. Como a portuguesa Ana Cássia Rebelo, em Ana de Amsterdã, Rhodes faz do livro um acerto de contas com seu próprio monstro. Nesse caminho, James é Sísifo que, assim que chega ao cume, vê rolar a pedra que carregou até lá. É preciso coragem em cada recomeço.
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Para tentar fugir da roda do destino, ficou dez anos sem tocar, literalmente, em um piano, trabalhou como chapeiro no Burger King e precisou perder a maioria dos amigos para entender que estava na hora de procurar sua salvação.
Instrumental é uma obra-prima do sofrimento, uma catarse que se espalha palavra a palavra.
Desespero
Entre internações clínicas, sessões de automutilação e tentativa de suicídios, Rhodes foi ejetado de um casamento, perdeu a guarda do seu único filho. Tudo isso é narrado com crueza, mas jamais amargura – e, claro, o autor passa ao largo de qualquer vontade de criar um espelho moral ou de autoajuda. É a sua vida, pura e simplesmente, narrada em todos as páginas.
Com a frieza de quem corta o antebraço, o pianista desmistifica a pedofilia e a neurose que o ato causa na vítima. São anos a fio de paranoia e de superproteção ao filho que quebram o tabu e a barreira da falta de informação. “A ignorância”, diz um ditado árabe, “é vizinha da maldade” e Instrumental é um grande lance de escadas para o conhecimento.
Instrumental é uma obra-prima do sofrimento, uma catarse que se espalha palavra a palavra. Como Rimbaud, Rhodes narra sua temporada no inferno, mas ele é, ao mesmo tempo, Orfeu e Eurídice. A harpa, bem, a harpa é a sua própria vida. Chegar ao ponto final é mais que um ato literário, é um gesto de compaixão.
INSTRUMENTAL | James Rhodes
Editora: Rádio Londres;
Tradução: Luis Reyes Gil;
Quanto: R$ 45,50 (288 págs);
Lançamento: Abril, 2017.