A autora Jhumpa Lahiri era uma garotinha que tinha acabado de aprender a ler, em uma escola de ensino fundamental no estado norte-americano de Rhode Island, quando percebeu em si a vontade de escrever. O desejo era o de reproduzir, em suas próprias palavras, histórias que lhe contavam, e algumas poucas que já dava conta de ler sozinha.
Então passou a cobiçar os cadernos de capa dura, destinados a exercícios de caligrafia ou de matemática, que a professora guardava em uma armário fechado à chave dentro da sala de aula. Um dia, quando ninguém estava olhando, e a porta do móvel havia sido deixada entreaberta, conseguiu realizar o seu primeiro grande delito: um furto, em nome da literatura.
Aos 47 anos, Jhumpa, que participou na edição deste ano da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), encerrada no último domingo, considera esse momento fundamental na compreensão de sua vocação para as letras. “Poderia ter pedido aos meus pais para comprar um caderno igual, mas precisava de um daqueles, porque acreditava que apenas naquelas páginas eu conseguiria escrever.”
Filha de imigrantes indianos, naturais da cidade de Calcutá, Jhumpa diz nunca ter tido uma língua para chamar de sua, que expressasse por completo sua identidade.
Em casa, até ir para a escola nos Estados Unidos, ouvia apenas o bengali, que nunca aprendeu formalmente. A alfabetização veio na língua inglesa, que muito rapidamente aprendeu a dominar com mais desenvoltura do que os pais. “Cresci me sentido um pouco traidora, ao adotar como meu um idioma que não era de meus ancestrais. Tinha um pouco de vergonha, e de culpa, de ler e escrever em inglês, de falar com sotaque americano, em um país onde poucos se pareciam comigo, ou tinham meu sobrenome.”
Mestre em Literatura Comparada e doutora em Estudos sobre o Renascimento, Jhumpa, que nasceu na Inglaterra, usou o inglês para escrever os contos de Intérprete de Males, lançado em 1999. O volume, seu primeiro livro publicado, lhe valeu o Prêmio Pulitzer de ficção e a tirou do anonimato, a colocando em grande estilo no mapa da literatura mundial.
Antes mesmo dessa estreia, já pensava em escrever o romance, Aguapés, que lhe valeu uma vaga entre os finalistas dos prestigiados Man Booker Prize (Reino Unido) e National Book Award (EUA). A trama tem como pano de fundo um movimento de extrema esquerda, de influência maoísta, desencadeado na região onde seus pais nasceram década de 1970. Quando adolescente, passava uma temporada com a família em Calcutá, e ouviu a história de dois irmãos, ambos militantes, morto pela polícia.
O caso, embora não seja reproduzida no livro, jamais foi esquecido e serviria de base para Aguapés, que levou muitos anos para ganhar corpo e virar livro. A obra, assim como Intérprete de Males e O Xará (2003), seu primeiro romance, adaptado para o cinema pela cineasta Mira Nair (de Casamento à Indiana), acabam de ser lançados no Brasil pela editora Biblioteca Azul – a Cia das Letras já havia lançado a coletânea de contos Terra Descansada, de 2008.
Há dois anos vivendo em Roma com o marido, o jornalista Alberto Vourvoulias-Bush, editor da revista Time, e os dois filhos, Jhumpa agora dedica-se a escrever em italiano. “Estou me sentindo de novo como aquela menina que roubou o caderno da escola.”
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