Se para Pessoa (1888 – 1935) navegar e viver eram verbos que não se conjugavam juntos – o primeiro transitivo e o segundo não –, na obra de outro português, José Luís Peixoto, ambos são palavras que só podem existir se lado a lado. O caminho imperfeito, que os gaúchos da Dublinense acabam de publicar, é o diário de bordo da viagem que o escritor fez à Tailândia, aos moldes do que já havia escrito a respeito se sua passagem pela Coreia do Norte em Dentro de um segredo ou até mesmo – de forma muito mais subjetiva – à sua Galveias natal, no livro homônimo.
Peixoto é um iconoclasta: derruba os ídolos – os lugares-comuns, com o perdão do trocadilho ao falarmos de viagens– para dar voz ao exótico. Seja no relato dos jovens que enviavam partes de corpos mutilados para os Estados Unidos, as técnicas de pompoarismo ou a obsessão de um rei por seu amigo canino – que rendeu uma biografia do bicho e sentenças descomunais para quem ofendesse o animal –, o autor português cria uma narrativa sentimental e geográfica, um passeio pelos caminhos estranhos do desconhecido. É o tal do distante que “perde a distância quando se vai lá” que Peixoto cita logo no início do livro.
Para se debruçar sobre o exótico, Peixoto escolhe o lirismo, a beleza. No meio do caos, e das tantas possibilidades de colapso, O Caminho imperfeito é um recado de amor ao desconhecido, uma viagem íntima pelo universo do próprio escritor.
Em alguma medida, O caminho imperfeito é a especulação sobre o diferente, um ensaio engajado a respeito de ser cego mesmo que se possa ver. A Tailândia que a obra apresenta é uma trilha entre o passado e o presente, uma linha tênue entre a tecnologia e a ancestralidade. Essa ideia – e impressão – de ruptura percorre toda a narrativa. Em um primeiro plano pela estranheza e depois, mais adiante – talvez numa segunda leitura –, por dar nome a tudo aquilo que, para a cultura ocidental, parece inominável. São espaços em branco preenchidos pelo invisível, como um caleidoscópio impossível de ser descrito.
Peixoto está frente à esfinge, pronto para ser devorado:
“Pelo meio de troncos, como um segredo, voltámos a ver a aldeia de Mae Kampong — superfície de telhados irregulares, enterrados no fundo de um vale, entre duas encostas de verde denso. A natureza engolia Mae Kampong ou, então, era Mae Kampong que se afundava na natureza.”
Ainda assim, diante desse abismo resiste uma espécie de cumplicidade entre presa e caçador, em que os papeis se alternam constantemente. Ora é o narrador quem está à caça do que as cidades podem oferecer, ora é a própria Tailândia que o persegue com suas tradições às vezes pouco compreensíveis. “Sem passado não é possível escrever”, disse certa vez à Escotilha. Em O caminho imperfeito, tal como em Morreste-me, percorre o vazio. Em ambos, é o autor quem está cara a cara com o desabitado. No primeiro, o vácuo é um produto daquilo que não se sabe – cultura, povo, costumes –, no segundo, é ausência que dá o tom desse vazio.
O que une ambos é o silêncio:
“O silêncio da igreja era perfeito para enchermos com as nossas vozes sussurradas — nas costas ou na ausência da freira. Não conseguíamos resistir à desinquietação de estarmos juntos, tudo era engraçado — uma careta, um gesto. Tínhamos todos sete anos, andávamos todos na segunda classe.”
Para se debruçar sobre o exótico, Peixoto escolhe o lirismo, a beleza. No meio do caos, e das tantas possibilidades de colapso, O caminho imperfeito é um recado de amor ao desconhecido, uma viagem íntima pelo universo do próprio escritor.
O CAMINHO IMPERFEITO | José Luiz Peixoto
Editora: Dublinense;
Tamanho: 192 págs.;
Lançamento: Março, 2020.