Joseph Mitchell chegou a Nova York um dia depois da quebra da bolsa. A cidade – e todo os Estados Unidos – em polvorosa com a crise que se anunciava e o rapaz, com apenas 21 anos, estava deslumbrado com a metrópole que espelhava em seus olhos. O que mais o interessava, porém, não era a Nova York dos magnatas que chegavam em limusines, e sim a Nova York da Bowery, do Greenwich Village – cheia de sujeitos boêmios (um eufemismo e tanto que nunca cansou de usar), excêntricos, gente que dormia nos hotéis de 25 centavos a noite e nos albergues.
Antes de chegar à redação da The New Yorker, Mitchell passou em jornais menos lisonjeiros como o The World e o New York Herold Tribune. Não que não tenha dado certo nessas publicações, mas Joseph era um repórter avesso à notícia; detestava ter que conversar com qualquer figurão da política ou dos negócios. Quando chegou à revista de Harold Ross, em 1938, finalmente encontrara o seu lugar. Sem ter que cumprir pauta e prazo alguns, Mitchell podia flanar pela cidade e se debruçar a escrever sobre quem ou o que bem entendesse.
Seus perfis não se pareciam em nada com o que os leitores estavam acostumados. Em vez daquele desfiar narrativo sobre o seu personagem, Joseph Mitchell transformava o perfil em uma espécie de conto de não ficção. O assunto, à primeira vista, poderia ser qualquer coisa modorrenta, até que o jornalista fosse lá – com calma e precisão – e retirasse aquele verniz. Foi assim com o McSorley’s, um bar sobre o qual escreveu na década de 1940 e que, por aqueles anos, estava completando 86 anos. Qualquer um que passasse por lá talvez não visse o que Mitchell via. O lugar – habitado pelo puro creme dos bêbados e desocupados – recebeu o tratamento digno do Café de La Paix.
“O Bar de McSorley”, publicado pela piauí em 2015, foi um retrato histórico do bar mais antigo de Nova York. Com seus quatro donos até então, Mitchell faz um apanhado como poucos escritores – quem escreve para a The New Yorker é chamado de escritor e não de jornalista – poderiam fazer. Das teias de aranha que enfeitam o teto, ao inexistente banheiro para mulheres – “ATENÇÃO. NÃO DISPOMOS DE RESERVADO PARA SENHORAS”, diz uma placa em frente ao reservado –, tudo está lá.
Seus perfis não se pareciam em nada com o que os leitores estavam acostumados. Em vez daquele desfiar narrativo sobre o seu personagem, Joseph Mitchell transformava o perfil em uma espécie de conto de não ficção.
Licença poética
A obra máxima de Mitchell, no entanto, é O Segredo de Joe Gould, livro que contém dois perfis que escreveu sobre um mendigo que vivia na mesma região do McSorley’s. Joe Gould, nascido em uma família de classe média alta, chegou a estudar em Harvard e pretendera ser cirurgião – para agradar ao pai –, mas acabou largando tudo para viver refletindo. Andava de bar em bar com um catatau embaixo do braço e bitucas de cigarro no bolso. O calhamaço era um dos capítulos do maior livro inédito já escrito: a Historia oral do mundo. Cada caderno seria um tomo da obra, que fora rejeitada por diversos editores por ser obscena e ofensiva ou pela letra de Gould ser ilegível. Tudo, na verdade, não passava de uma falácia de Gould, que tinha poucos ensaios manuscritos – em geral versões e mais versões da história da morte de seu pai.
O primeiro escrito, publicado em 1942, Professor Gaivota, apresenta a figura singular que é Gould. Afirmando conhecer o “gaivotês”, traduz poemas para esse idioma e dança alucinadamente enquanto imita os pássaros em bares para tentar arrumar algum trocado para o Fundo Gould. O Segredo de Joe Gould, dado à luz em 1964, sete anos após a morte de seu personagem, é ainda mais revelador. Digerido ao longo de 22 anos, o texto narra com mais minúcias as tentativas de Gould em sobreviver.
Mitchell era mesmo um criador. Segundo seu biógrafo, Thomas Kunkel, o jornalista se dava algumas licenças poéticas para tornar seu texto mais atrativo: alterava dados cronológicos e reescrevia trechos de entrevistas. Tudo para dar mais… fluidez ao perfil. O caso é que, liberdades à parte, de meados dos anos 1960 até a sua morte, em 1996, Mitchell praticamente não escreveu mais nada.
Um dos nomes mais profícuos e criativos do new journalism terminou seus dias em silêncio. A contrapartida é o eco que seus textos fazem ainda hoje em quem se aventura na ficção ou no jornalismo narrativo. Para o jovem que chegou à Big Apple no meio da Grande Depressão, Mitchell foi um garoto prodígio.
O SEGREDO DE JOE GOULD | Joseph Mitchell
Editora: Companhia das Letras;
Tradução: Hildegard Feist;
Tamanho: 160 págs.;
Lançamento: Junho, 2003.
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