O Brasil possui uma tradição invisível de negação às suas raízes latino-americanas. Não bastasse toda a falta de identificação com o resto do continente, esse alijamento – que é um fenômeno social, econômico e, claro, cultural – nos afasta daquilo que a região tem de mais rico e coloca em evidência as mazelas e diferenças.
Não é sem motivo, portanto, que a literatura produzida a partir do México até Argentina receba tão pouca atenção por aqui. Para além dos cânones, autores afastados dessa áurea de clássicos, e também alguns contemporâneos, ainda enfrentam certa resistência em serem lidos nas terras de Machado.
Juan Emar (1883 – 1964), a quem Neruda chamou de “Kafka chileno”, é um desses casos. Longe de fazer parte do grande panteão da literatura latino-americana, Emar, pseudônimo de Álvaro Yáñez Bianchi, permaneceu obscuro em solo brasileiro até a publicação do, praticamente, inclassificável, Um ano, há poucos anos e como parte da coleção Outra língua, coordenada por Joca Reiners Terron.
Elabora como uma espécie de diário canhestro, Um ano retrata apenas o primeiro dia de cada mês e apresenta ao leitor um grande catálogo de incursos surrealistas. Em situações absurdas, o narrador se liberta das amarras de um cotidiano qualquer – como se procurasse o que há de singular nas questões mais prosaicas – e constrói uma espécie de caleidoscópio contra o tédio e a burocracia.
Em certa medida, Um ano é um relato do burguês inconformado. Como o próprio Emar – que passou boa parte da sua vida vendo em Paris, teve apenas um emprego formal na vida e retornou esporadicamente a Santiago –, o narrador é um sujeito em perpétuo colapso consigo mesmo e com as regras de uma sociedade hipócrita. Quando tempo é dinheiro, ficar em uma esquina vendo o mundo passar é subversivo. Quando as relações estão atrelados a valores de submissão feminina, um homem que se faz submisso é igualmente repreensível.
Um ano é uma obra invisibilizada pela ignorância e pela preguiça da descoberta, mas é também um livro que parece entender – como poucos – a essência pluriforma da natureza humana.
A partir da aparente banalidade, Juan Emar – cujo nome pode ser também um trocadilho com a expressão francesa j’en ai marre (estou de saco cheio, estou farto) – cria um paralelo ambíguo, uma realidade espelhada. Como Beckett (1906 – 1989), o chileno explora as impossibilidades, a inércia e o vazio. Ao mesmo tempo, a sua narrativa tem a frieza de Kafka (1883 – 1924), o mecanicismo de Gombrowicz (1904 – 1969) e o idealismo de Macedonio Fernández (1874 – 1952) – como quem, por sinal, guarda a semelhança de construir uma obra que lhe consumiria a vida.
A literatura de Emar parece antecipar o abismo em que o Chile seria jogado quando Allende foi morto por Pinochet e instaurada a ditadura. Mesmo que Um ano seja um livro diáfano, sua construção é complexa, justamente, por buscar esse espelhamento com aquilo que se entende como realidade. Em seus doze capítulos, a maioria bastante breve, Emar explora as contradições para criar antíteses originais, que ora narram com um humor negro peculiar e ora com uma melancolia à la Buster Keaton.
Um ano é uma obra invisibilizada pela ignorância e pela preguiça da descoberta, mas é também um livro que parece entender – como poucos – a essência pluriforma da natureza humana.
UM ANO | Juan Emar
Editora: Rocco;
Tradução: Pablo Cardellino Soto;
Tamanho: 128 págs.;
Lançamento: Abril, 2015.