Li O Buda no Sótão (Grua, 2014), de Julie Otsuka, em pouco mais de uma hora. Um romance? Novela ? No lançamento da edição brasileira, o crítico Alcyr Pécora o classificou de “inventário de eventos”. Uma voz coletiva enumera acontecimentos na vida de várias personagens com nomes japoneses femininos desde a chegada num navio de imigrantes aos Estados Unidos, em 1910. As ilusões das “noivas do retrato” (mulheres que casavam através de fotografias), as decepções na chegada à terra hospedeira, a violência doméstica, a exploração no trabalho nas lavouras, a maternidade sufocada, os campos de concentração, a anulação da identidade são capítulos que compõem esta história da comunidade americana. E repercutem não só entre japoneses estabelecidos no hemisfério norte.
A norte-americana Julie Otsuka valeu-se da leitura de vários registros e documentos de imigrantes japoneses que foram para os Estados Unidos. Não há como não lembrar do filme Noiva do retrato (Picture Bride, de Kayo Hatta, adaptação do romance homônimo de Yoshiko Uchida), que mostra a vida de uma japonesa que se casa com um imigrante no Havaí. Ou, como brasileiros, criar conexões com o nosso repertório cultural: os filmes Gaijin, de Tizuka Yamasaki, o globalizado Corações sujos, de Vicente Amorim, e o romance Nihonjin, de Oscar Nakasato. Mas o tom de Julie aponta para o esotérico Sonhos bloqueados, de Laura Honda-Hasegawa. Em vez de reinventar sagas que reciclam mitos culturais, Julie e Laura preferem relatar tragédias em tom menor.
“Segure sua xícara com as duas, fique longe do sol, nunca fale mais do que o necessário. A maioria de nós que estávamos no navio havia sido bem educada e tinha certeza de que seria boa esposa. Sabíamos cozinhar e costurar. Sabíamos servir o chá e arranjar as flores, e sentar e silêncio sobre os pés chatos por horas, sem dizer algo de significativo que fosse. Uma moça deve se confundir com a sala: ela deve estar presente sem parecer que existe. Sabíamos como nos comportar em funerais, e como escrever poemas curtos e melancólicos sobre a passagem do outono com exatas dezessete sílabas. Sabíamos como arrancar ervas daninhas, como escolher gravetos e como esquentar a água, e uma de nós – a filha do dono do moinho de arroz – sabia como andar três quilômetros até a cidade com um saco de quarenta quilos de arroz nas costas sem derramar uma única gosta de suor.”
Em vez de reinventar sagas que reciclam mitos culturais, Julie e Laura preferem relatar tragédias em tom menor.
Embora os dez campos de internamento na Costa Oeste tenham sido uma das políticas mais cruéis do governo Roosevelt cometidos contra cidadãos americanos, este não é o eixo principal da narrativa de Julie. O capitulo dedicado aos campos que aprisionaram 120 mil imigrantes japoneses, seus filhos, em áreas militares, tidos como inimigos de guerra, ocupa 22 das 148 páginas do livro. O Buda no Sótão é uma história sobre mulheres treinadas para serem confundidas com os móveis da casa. Não apenas em sua tradição cultural, mas também numa sociedade considerada mais avançada em relação aos direitos de igualdade entre os sexos:
“Sempre que deixávamos as J-Towns para nos aventurar por entre as ruas largas e limpas das cidades deles, tentávamos não chamar atenção. Nos vestiamos como eles se vestiam. Andávamos como eles andavam. Fazíamos questão de não andar em grupos grandes. Nós nos fazíamos pequenas para eles – e tentávamos ao máximo não ofender. Mesmo assim, implicavam conosco. Os homens davam tapas nas costas de nossos maridos e gritavam: Peldão! ao derrubar o chapéu deles. As crianças jogavam pedras em nossa direção. Os garçons sempre nos serviam por último. Os lanterninhas sempre nos levaram para cima, nas sacadas do segundo andar dos teatros, e sempre indicavam os piores lugares da casa. O paraíso dos negros, eles diziam. Os barbeiros se recusavam a cortar nossos cabelos. Duros demais para nossas tesouras. As mulheres pediam para sairmos da frente dos carros sempre que estávamos muito próximos. “Desculpe”, dizíamos, dando um passo para o lado com um sorriso no rosto. Porque a única maneira de resistir, como ensinaram nossos maridos, era não resistindo. Na maior parte dos tempo, no entanto, permanecíamos em casa, nas J-Towns, onde nos sentíamos em segurança no meio de nosso povo. Aprendíamos a viver certa distância deles, e os evitávamos sempre que possível.”
Japan-Towns ou J-Towns são denominações de comunidades étnicas, como Little Tokyo, em Los Angeles, ou Japantown, em São Francisco, o equivalente ao bairro da Liberdade em São Paulo, ou ao Jardim das Américas, em Curitiba. O Jardim das Américas é o bairro curitibano para onde famílias japonesas evacuadas do litoral paranaense foram forçadas a transladar, em 1942, em episódio semelhante ao americano.
Julie Otsuka venceu o Prêmio Pen/Faulkner de 2012 com o livro. A autora não viveu a experiência do aprisionamento nos campos de internamento, mas seus pais, sim, tema que aproveitou em seu primeiro romance, Quando o imperador era divino. Julie nasceu em 1962, em Palo Alto, Califórnia. Graduou-se em Artes pela Universidade de Yale, em 1984 e Mestre em Artes, pela Universidade de Columbia, em 1999.
[box type=”info” align=”” class=”” width=””]O BUDA NO SÓTÃO | Julie Otsuka
Editora: Grua;
Tradução: Lilian Jenkino;
Quanto: R$ 26,18 (144 págs);
Lançamento: Janeiro, 2014.
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