O escritor tcheco Karel Čapek (1890-1938) já foi objeto de estudo de dois textos aqui na Escotilha. Nos dois casos, tivemos contato com um dos veios criativos do autor: a ficção científica. Neste texto, gostaria de discutir um outro Čapek: o contista genial.
Em Histórias Apócrifas (Editora 34, 1994; tradução de Aleksandar Jovanovic), Čapek brinda-nos com questionamentos como que às margens de histórias muito conhecidas: como teria sido a noite de Pilatos após a crucificação de Cristo? Qual teria sido a discussão do tribunal que condenou Prometeu? O que um casal de “vovós da caverna” temeria em relação às modernidades?
O recurso de usar o passado para refletir acerca do presente não é exclusividade de Čapek. Para que nos mantenhamos no mundo eslavo, Zbigniew Herbert (poeta polonês, 1924-1998) faz uso deste recurso de modo consistente ao longo de sua obra, como que em busca de uma ética pré-cartesiana perdida que, parece, seria a única possibilidade de sobreviver no mundo pós-Auschwitz. O caso de Čapek é menos sisudo e, certamente, faz rir. Não apenas rir, naturalmente: o grande autor tcheco é mestre em usar o humor para fazer pensar.
Conheceremos a história de Tersites, soldado grego na guerra de Tróia, que reclama do “peleu Aquiles”: “[…] nós, velhos soldados, estamos aqui só para ver, boquiabertos, um moleque, um queridinho da mamãe desfilar para cima e para baixo no acampamento” e, não poupando aquele cuja ira foi cantada pela musa, segue: “Aquiles posa de herói só para tirar proveito de tudo e roubar-nos todos os méritos”. Será que o sentimento de Tersites não é conhecido de todos nós? Os grandes heróis não seriam todos apenas os nomes que conseguiram aglutinar todo o trabalho de tantas formiguinhas anônimas – estas, sim, heroicas? A história ensinada nas escolas é repleta deste tipo de discurso denunciado por Tersites…
Será que o sentimento de Tersites não é conhecido de todos nós? Os grandes heróis não seriam todos apenas os nomes que conseguiram aglutinar todo o trabalho de tantas formiguinhas anônimas – estas, sim, heroicas?
Noutro texto, leremos uma carta de Alexandre o Grande a seu antigo preceptor, ninguém menos que Aristóteles. Neste texto, datado de 1937, leremos como, sempre pelas mais justificáveis razões, o sonho de heroísmo e grandeza vira loucura e o herói (essa figura, para dizer o mínimo, controversa) passa a ir contra tudo aquilo que aprendeu: “como vão longe os dias em que me ensináveis a usar a razão e a lógica! Mas a razão obriga-me a adaptar os meios à desrazão humana”, escreverá Alexandre.
Talvez os problemas de “governabilidade” (perdoem-me, as senhoras e os senhores, pelo uso da palavra) não sejam coisa tão recente…
Em outro dos pequeninos contos, Čapek nos convida a imaginar uma discussão entre Abraão e Sara sobre quais seriam os dez justos merecedores de se salvarem da programada destruição de Sodoma.

Longe da discussão que imaginaríamos entre as duas personagens, teremos uma debate que, provavelmente, todos nós já ouvimos: “a mulher de Ló é minha amiga, e Ló, do teu irmão, Harã. Não digo que Ló seja justo, tu bem sabes”, dirá Sara. Lentamente, as razões pessoais sobressaem-se à justeza de caráter: “embora ele [Ló] seja falso e invejoso, é da família”, ou, ainda: “Seboim é filho do velho Dodanim. Será que o filho de um ladrão e usurário pode ser justo?”. Assemelha-se muito à complicada arte de organizar uma festa, mas trata-se, vejam, de salvar uma cidade inteira. Será que somos capazes de deixar de lado nossas “picuinhas” em prol de um bem maior?
Quero, ainda, trazer mais um exemplo da genialidade de Čapek. Em Ben-Khanan, texto de 1934, Caifás reflete sobre o julgamento de Cristo: “simplesmente agimos a serviço do poder romano, não é? Por que deveríamos assumir qualquer culpa então? Se a condenação dele foi justa, então está tudo em ordem; se, ao contrário, a condenação foi injusta, a culpa é dos romanos; nada mais podemos fazer senão culpá-los”.
A reflexão de Caifás é tentadoramente similar àquela feita por Eichmann em seu julgamento. Será que, realmente, estar apenas “seguindo a lei” nos exime de qualquer culpa? Será que o ser humano é incapaz de refletir eticamente para além de leis pretensamente neutras e justas? Será que já não usamos esta desculpa para poder dormir à noite?
A leveza de Čapek, tento mostrar, esconde dilemas éticos complexos e creio que Histórias Apócrifas deva ser lido e relido. Ademais, na excelente tradução de Jovanovic, a tarefa se torna ainda mais agradável.
[box type=”info” align=”” class=”” width=””]HISTÓRIAS APÓCRIFAS | Karel Čapek
Editora: Editora 34;
Tradução: Aleksandar Jovanovic;
Tamanho: 176 págs.;
Lançamento: Janeiro, 1994 (1ª edição | atualmente na 3ª, lançada em 2013).
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