No texto anterior, que você pode conferir clicando aqui, vimos como duas concepções de Literatura Fantástica se estruturam: de um lado, a noção do Fantástico enquanto um gênero, implementado por Todorov; do outro, a noção de modo discursivo, que coloca sob o guarda-chuva da Literatura Fantástica qualquer texto que aborde o sobrenatural e o insólito.
Continuando nosso caminho, hoje teremos uma perspectiva histórica com o intuito de entender o desenvolvimento da Literatura Fantástica – suas vertentes e um tipo de produção mais nuclear, mais próxima à noção de gênero.
O professor Alexander Meireles da Silva, doutor em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) com uma tese sobre o nascimento da ficção científica brasileira no começo do século XX, docente de Língua Inglesa e Literaturas na Universidade Federal de Goiás (UFG) e organizador o canal e blog Fantasticursos (veja aqui), que discute Fantasia, Ficção Científica e o Gótico, continua nos auxiliando no percurso e apresentando alguns apontamentos históricos.
No prólogo de Antologia da Literatura Fantástica, organizado por Adolfo Bioy Casares, Silvina Ocampo e Jorge Luís Borges, Bioy Casares comenta como as narrativas fantásticas existem desde tempos imemoriais: “Antigas como o medo, as ficções fantásticas são anteriores às letras. As assombrações povoam todas as literaturas: estão no Avesta, na Bíblia, em Homero, no Livro das mil e uma noites“. Em seguida, o escritor apresenta sobre suas considerações sobre a Literatura Fantástica moderna, mais próxima da noção de gênero.
No entanto, antes de nos aprofundarmos nesse estudo, é importante termos uma noção maior do cenário. Na introdução da edição norte-americana do livro, Ursula K. Le Guin elege Frankenstein como um marco da literatura fantástica moderna. Nessa perspectiva mais ampla, Ursula vê no livro de Mary Shelley os desdobramentos do fantástico em outras vertentes, como a ficção científica ou o terror. Segundo ela, “como os fantasmas habitam, ou assombram, parte do vasto domínio da literatura fantástica, tanto oral como escrita, aqueles mais familiarizados com esse recanto nomeiam tudo como Histórias Mal-Assombradas, ou Contos de Terror; assim como outros chamam-nas de Contos de Fadas, em função da parte que mais conhecem ou apreciam; e outros ainda preferem o termo Ficção Científica”.
‘Antigas como o medo, as ficções fantásticas são anteriores às letras. As assombrações povoam todas as literaturas: estão no Avesta, na Bíblia, em Homero, no Livro das mil e uma noites’.
Segundo Alexandre Meireles, essas narrativas tiveram forte penetração junto às massas no século XVII e, por isso, “o Fantástico foi por muito tempo usado como um veículo ideológico de marginalização e exclusão”. Como exemplo, Alexander cita a representação das mulheres em contos de fadas, a criatura de Frankenstein como os cadáveres do povo que se voltam contra o burguês, ou o Drácula provenientes de terras do leste europeus consideradas atrasadas.
O cenário só se modifica nos anos 1960, quando essas mesmas narrativas são apropriadas por escritores e escritoras que desconstroem essas ideologias. “É o caso, nos anos 70, da saga As Brumas de Avalon, de Marion Zimmer Bradley, que trazia uma releitura da lenda arthuriana, ou A Mão Esquerda da Escuridão, de Ursula K. Le Guin, onde a escritora desconstruiu questões de gênero e a representação do alienígena na Ficção Científica”.
No caso brasileiro, o fantástico está presente desde a tradição folclórica dos povos fundadores, em seus mitos e lendas – retrabalhados por artistas diversos, como Macunaíma (1928), de Mário de Andrade. Dentro do universo literário, o fantástico está infiltrado desde o Romantismo. No O Guarani (1857), de José de Alencar, “as descrições apresentadas pelo escritor trazem a mente cenários usadas pelo gótico europeu”, afirma Alexander Meireles. Essa troca, entre Gótico e o Romantismo brasileiro, se intensifica em romances como Noite na Taverna (1855), de Álvares de Azevedo, Escrava Isaura (1875) e Dança dos Ossos (1871), ambos de Bernardo Guimarães.
Na Fantasia, o início pode ser datado com A Rainha do Ignoto (1899), de Emília Freitas. Segundo Alexander, “a obra explora o simbolismo da ilha e da caverna ao mesmo tempo em que antecipa questões das utopias feministas que começavam a surgir também na América e na Europa”. Monteiro Lobato auxilia no desenvolvimento do quadro inserindo a Fantasia na Literatura Infantil. No caso da Ficção Científica, o primeiro vislumbre ocorre pela influência de Júlio Verne no romance O Doutor Benignus (1875), de Augusto Emílio Zaluar, “mas só se institui como gênero no fim dos anos 40 por meio dos romances do escritor Jerônymo Monteiro”, disse o professor.
Por fim, Murilo Rubião e José J. Veiga podem ser destacados como próximos do núcleo do fantástico na literatura brasileira (veja aqui um vídeo sobre a carreira dos dois escritores). Mas como caracterizar essa literatura fantástica?
Para entender, retomemos a introdução de Bioy Casares e vejamos a introdução de Ítalo Calvino para a coletânea Contos Fantásticos do Século XIX. Ambos descrevem o estilo como algo forte na Europa do século XIX. Segundo Calvino, “à nossa sensibilidade de hoje, o elemento sobrenatural que ocupa o centro desses enredos aparece sempre carregado de sentido, como a irrupção do inconsciente do reprimido, do esquecido, do que se distanciou da nossa atenção racional”.
Por fim, o que caracteriza sua temática “é a relação entre a realidade do mundo que habitamos e conhecemos por meio da percepção e a realidade do mundo do pensamento que mora em nós e nos comanda. O problema da realidade daquilo que se vê – coisas extraordinárias que talvez seja alucinações projetadas por nossa mente; coisas habituais que talvez ocultem sob a aparência mais banal uma segunda natureza inquietante, misteriosa, aterradora – é a essência da literatura fantástica”.