Por meio de Nathan Zuckerman, alter ego que estreou em O Escritor Fantasma (1979), Philip Roth (1933 – 2018), falecido no último dia 22, aos 85 anos, mostrou ao mundo a via crucis a qual foi submetido após seus primeiros livros, em especial Adeus, Columbus (1959) e Complexo de Portnoy (1969), escrutinarem o cotidiano do judeu norte-americano. A coragem o tornou persona non grata em alguns círculos e um dos grandes nomes da literatura, tendo – ainda em vida – suas obras publicadas pela Library of America, algo só alcançado por Saul Bellow (1915 -2005) e Eudora Welty (1909-2001).
Roth foi um autor movido a pulsões. Seus protagonistas eram homens de carne e osso, e isso gerava, sem sombra de dúvidas, grandes incômodos em quem pretendia se refugiar na ficção. Era muito fácil para o leitor se flagrar refletido nos anti-heróis criados pelo escritor. Apesar de toda a casualidade, conseguiu criar um universo muito próprio, em geral, situado em Newark, no estado de Nova Jersey. A cidade, que um dia fora sinônimo de decrepitude e violência, viu seu filho mais famoso descrevê-la com um misto de devoção edipiana. Ao mesmo tempo que a saudava, tentava fazer arder ainda mais as suas feridas.
Aposentado desde 2010, quando publicou Nêmesis, Roth já não lia mais ficção. Interessava-se somente pelas biografias. Há tempos cotado para o Nobel, morreu sem recebê-lo. Quem perde, na realidade, é o prêmio – que cada vez mais está afundado em escândalos sexuais. Algo tão próximo aos plots daquele que nunca pode entrar no seu rol de laureados. Pura ironia do destino.
Se por um lado Roth era um arguto observador daquilo que a sociedade – falsamente – puritana tentava esconder, em outra mão exibia uma sensibilidade ímpar para descrever as relações humanas, como em Patrimônio (1991), um relato sobre a doença e a morte de seu pai.
Nuances
Roth foi o Kafka americano. O escritor tcheco, que habita a novela A Orgia de Praga (1985), foi uma das suas maiores inspirações. Como fez o autor de O Processo, não teve pudor em apresentar ao mundo o que havia de pior. Menos obscuro, é verdade, mas muito mais cínico. Ao final de sua carreira, produziu textos breves, porém não menos ferozes. Animal agonizante (2001) é uma ode à decrepitude, um vislumbre sobre o envelhecer. É impossível não notar o caráter autobiográfico de seus livros.
‘Contar histórias, isto que foi tão precioso durante toda minha existência, já não é o centro da minha vida’. Philip Roth
Ao contrário do que se possa imaginar, o homem que escreveu O Professor de Desejo (1977) é o mesmo que se retratou em Os Fatos (1988), tardiamente publicado no Brasil. Tantos nuances deixam claro que Roth não foi um sujeito cartesiano, decifrável. Ao longo da vida, pessoal e literária, jamais se deixou rotular, ainda que o tachassem de misógino, machista e, até mesmo, antissemita.
Essa polifonia permitiu que explorasse os mais diversos ambientes: universidades, comitês políticos, comunidades judaicas, casamentos à beira da ruína, redações de jornais e equipes de futebol americano. O repertório poderia não ser dos mais maiores – “família, família, família, Newark, Newark, Newark, judeu, judeu, judeu”, como afirmou n’Os Fatos –, mas a amplitude do que escrevia era enorme. O denominador comum de toda essa equação literária foi somente um: a libido. Nesse sentido, o sexo poderia ser – como foi – o primeiro plano de muitos de suas histórias, condensando as ideias de Freud, como em Alexander Portnoy, ou de Foucault, como Simon Axler, de A Humilhação (2009).
Devido à sua vasta bibliografia, foi um espanto quando Roth revelou que já não sentia mais prazer em escrever. “Contar histórias, isto que foi tão precioso durante toda minha existência, já não é o centro da minha vida”, comentou em agosto de 2017 ao jornal francês Libération. Ao invés de se manter aliviado, como a maioria de seus congêneres, preferiu a honestidade e ficar em casa, no seu apartamento no charmoso Upper East Side, em Nova York. Analisando com certa frieza, algum distanciamento, é difícil imaginá-lo tomando qualquer outra decisão que não fosse a mais digna.
Facetas
Roth era o maior entre gigantes e, ao que parece, ninguém está à altura para sucedê-lo. Do professor de 26 anos que lança seu primeiro livro, causando polêmica e furor entre seus próximos, ao escritor renomado e vencedor do National Book Critics Circle Award e do Pulitzer, não há um abismo, mas uma grande ponte. Além de Zuckerman, o professor universitário, David Kepesh, também deu voz às paranoias, obsessões e angústias de seu criador.
Em O Seio (1972), Kepesh acorda metamorfoseado em grande peito – como sugere o título. A ironia com Kafka se mistura a Woody Allen, cujo Tudo o que você sempre quis saber sobre sexo (mas tinha medo de perguntar) (1972) também apresenta um seio gigante. Coincidência ou não, pouco importa.
Como dito antes, Roth era um homem de facetas. Talvez, a de menor conhecimento do público seja de entrevistador. Reading myself & other (1976) e Entre nós — um escritor e seus colegas falam de trabalho (1986) apresentam ao leitor um Philip Roth ainda mais articulado. O segundo livro, reeditado há pouco pela Companhia das Letras, apresenta conversas com Primo Levi, Aharon Appelfeld, Ivan Klíma, Isaac Bashevis Singer, Edna O´Brien e Milan Kundera. Este último, por sinal, só foi revelado ao mundo graças à coletânea Escritores da outra Europa, organizada Roth em 1974 e que continha também um conto de Bruno Schulz, considerado o Kafka – sempre ele – polonês.
Philip Roth incorporou – termo que ele próprio gostava de dizer – certa antecipação. Complô contra a América (2004) simula a aliança entre a Alemanha nazista e os Estados Unidos durante a Segunda Guerra Mundial. Em uma de suas últimas entrevistas, publicada em janeiro deste ano no New York Times, vê paralelos entre Trump e Charles Lindbergh, piloto norte-americano e supremacista branco, que no romance é alçando à presidência dos EUA. Entretanto, para o autor, enquanto Lindbergh possui algo próximo ao que podemos chamar de cérebro, Trump não passa de uma fraude. Sim, Roth foi, até os últimos minutos, um gênio.
E, por isso mesmo, fará falta. Maio foi, sem dúvida, um mês implacável: Dona Morte levou Wolfe, Dines e a Assionara. Que acabe por aí.