Cinco livros depois, acho que já não se faz mais necessário falar sobre aquela ladainha de autoficção, narcisismo e o apreço do autor pelas descrições, né? Também dá para fugir das comparações com Proust, pois quem chegou até aqui atravessou mais de 2 mil páginas, então já sabe que esse papo encheu o saco. E quem passou por esse tanto de páginas também já se acostumou ao personagem e ao estilo da prosa, de modo que de quando em quando sente saudade de paisagens norueguesas onde provavelmente nunca esteve.
Após mais um ano de espera, o leitor brasileiro tem em mãos o quinto volume da série Minha Luta: A Descoberta da Escrita, lançado pela Companhia das Letras, com tradução de Guilherme da Silva Braga. No nosso último contato com Karl Ove Knausgård, em Uma Temporada no Escuro, ele estava deixando a vida de professor temporário para trás e dando início à sua complicadíssima vida sexual. Agora, pouco tempo depois, acompanhamos um sujeito que vive o auge de sua juventude ao mesmo tempo em que dá os primeiros passos em sua carreira literária.
Richard Linklater, um dos meus cineastas favoritos, tem um filme excelente chamado Jovens, Loucos e Rebeldes (Dazed and Confused, 1993) que mostra basicamente um dia na vida de uma gurizada comum. São trocentos personagens indo e vindo meio sem rumo pelas ruas de uma cidadezinha, apenas bebendo suas cervejas, fumando, falando bobagens e curtindo o início do verão. Uma das coisas mais curiosas do filme é a forma como Linklater conduz a história, pois não há um plot com algum conflito a ser resolvido, não há nem mesmo um protagonista, a câmera apenas vai passando de uma personagem para outro e aos poucos vamos vendo se formar o singelo retrato de uma geração.
A Descoberta da Escrita me remeteu muito a esse filme, pois o retrato cru que Karl Ove faz de si mesmo e de sua falta de rumo está repleto daquela deliciosa insensatez juvenil com a qual eventualmente nos deparamos no cinema ou mesmo em nossas próprias memórias. Estão lá, tanto no próprio autor como nos inúmeros personagens que o rodeiam, o comportamento arrogante de quem se julga autossuficiente e eterno, a vontade enorme de descobrir o mundo e as pessoas dentro dele, a falsa modéstia daquele que simula uma baixa autoestima ao mesmo tempo em que sente especial e intelectualmente superior por alguma bobagem, como, por exemplo, por ter lido determinados autores.
Desde que você tenha tido uma juventude normal, no sentido de ter vivido uma fase inconsequente cheia de diversão, angústias, amores eternos e uma coleção considerável de burradas, é meio improvável não se identificar com o jovem Karl Ove.
Se nos livros anteriores há a questão da solidão e do tédio, no quinto livro nem dá muito tempo de passar várias páginas descrevendo o ato de escovar os dentes ou de pegar um ônibus, pois Knausgård levou uma juventude das mais intensas, desde seu ingresso num renomado curso de escrita criativa, passando pelo seu primeiro grande amor, pela sua participação como baterista numa banda de rock e, é claro, pelas trocentas bebedeiras homéricas até chegar enfim ao seu primeiro casamento.
Não que este seja um livro acelerado, já que tudo isso está dividido ao longo de 600 páginas, então a coisa toda é desenvolvida daquela maneira que já estamos acostumados e gostamos, mas digamos que esta é a narrativa mais movimentada até o momento.
Pros amantes do fazer literário, temos aqui todo o trajeto de Karl Ove, desde os primeiros textos até chegar de fato à publicação. O caminho árduo, com diversas recusas e inseguranças, é mostrado às vezes até em detalhes, mas o livro não fica preso apenas nesse tópico e vai alternando com tudo mais que está acontecendo em sua vida, e essa é a grande sacada, levando em consideração que no fim das contas ele acabaria usando aquelas experiências como matéria-prima de sua obra mais relevante.
O autor também se debruça sobre as leituras que fez na época e que foram importantes na sua formação, incluindo autores locais e clássicos da literatura e da filosofia. É interessante perceber que o jovem sente que suas experiências de vida são incompletas e então tenta preencher as lacunas lendo muito e enchendo a cara de forma descontrolada.
Os porres rendem alguns momentos bem tristes e outros um tanto engraçados, pois, por mais que a questão da bebida remeta à relação problemática com o pai alcoólatra, Karl Ove tem uma capacidade impressionante para fazer cagadas depois do primeiro gole e isso envolve até uma compulsão bizarra por roubar bicicletas no quintal de desconhecidos.
Desde que você tenha tido uma juventude normal, no sentido de ter vivido uma fase inconsequente cheia de diversão, angústias, amores eternos e uma coleção considerável de burradas, é meio improvável não se identificar com o jovem Karl Ove.
Esta relação entre memória e narrativa produz uma espécie de expansão de nossa experiência, pois a partir deste tipo de ficção que tenta mirar o real com tudo o que a realidade é, em sua banalidade e poesia (embora jamais deixe de ser uma reprodução e, portanto, uma ficção), podemos elaborar uma compreensão mais ampla a respeito de nossa própria história. É por isso que gostamos tanto dos livros de Knausgård, pois, como já disse em outro texto sobre o autor, no fim das contas, o que vemos refletido ali no lago do livro, é a nossa própria face. Ler o norueguês é uma forma de reviver o nosso passado e refazer diversos caminhos.
A Descoberta da Escrita não supera Um Outro Amor, que segue firme como o meu favorito do autor, mas conta com todos os elementos que fizeram a gente se apaixonar por esses tijolões que surgem de ano em ano para nos trazer alegria.
A DESCOBERTA DA ESCRITA | Karl Ove Knausgård
Editora: Companhia das Letras;
Tradução: Guilherme da Silva Braga;
Tamanho: 624 págs.;
Lançamento: Agosto, 2017.