“O eterno retorno é uma ideia misteriosa, e, com ela, Nietzsche pôs muitos filósofos em dificuldade: pensar que um dia tudo vai se repetir como foi vivido e que tal repetição ainda vai se repetir indefinidamente! O que significa esse mito insensato?”.
Assim começa A insustentável leveza do ser. O eterno retorno como mote é suficiente para lhe garantir o estatuto de romance filosófico que será, de fato, reforçado no decorrer da narrativa. Cabe a quem lê, de modo imediato e pertinente, questionar o que significa o eterno retorno dentro do próprio romance. Milan Kundera discorre nas páginas seguintes (com uma simplicidade inesperada, dado o teor filosófico complexo do assunto que escolheu como fundador) sobre as consequências que a teoria nietzschiana alcançaria caso se desse realmente, refletindo o “mito insensato” em sua forma do narrar.
Em um mundo em que todas as ações repetem-se infinita e invariavelmente, cada ato, outrora irrelevante, ganha peso, dimensão e importância praticamente insuportáveis. Do mesmo modo, é também intolerável a falta completa desse fardo, condenando os seres humanos à inconsistência. Diante dessa reflexão, reconhece-se o dilema fundamental para a constituição dos personagens de Kundera e dos conflitos que comporão a obra, qual seja o impasse entre peso e leveza.
Depois de exposta a contradição primordial do livro, são apresentados seus protagonistas. O cirurgião Tomas, típico celibatário que procura a diversão através das relações com mulheres, acredita na vida vivida apenas uma vez, levando a sério o provérbio alemão “einmal ist keinmal”, uma vez não conta, uma vez é nunca, já que intestável. Para ele, a vida não se repete e é formada pelo conjunto de meras casualidades. É justamente o acúmulo de acasos (seis deles, mais especificamente) que o levará à Tereza, “o absurdo encontro de um espermatozoide do mais viril dos homens com um óvulo da mais bela das mulheres”.
O garanhão, sempre tratando amor e sexo como elementos dissociáveis, quando não opostos, submete-se ao involuntário poder infantil da jovem garçonete, iniciando uma relação intoxicada pelo ciúme de Tereza, que busca em Tomas uma monogomia impensável por ele. A mais relevante entre as chamadas “amizades eróticas” do médico se dá com Sabina, mulher de personalidade notável que acredita e defende os valores particulares que deposita em cada palavra.
Sabina age de acordo com as próprias crenças, sempre em prol da liberdade, ainda que isso implique a quebra do contrato social aceito pela maioria. Kundera aproveita suas ideias libertárias para construir através delas um vocabulário de palavras incompreendidas, repleto de léxicos que representam conceitos e imagens diferentes para cada pessoa e reforçam a figura independente e vigorosa da artista, certamente a mais fascinante e íntegra das personagens do livro.
Kundera aproveita suas ideias libertárias para construir através delas um vocabulário de palavras incompreendidas.
Como pano de fundo a conflitos aparentemente tão interiores, desenvolve-se a Primavera de Praga na então Tchecoslováquia, pátria dos três personagens principais que serão afetados pela repressão soviética do período. Sabina aponta o comunismo como um pai ditador, severo e restrito, ameaça ao seu gênio livre, e por isso emigra para Genebra. Tereza, por sua vez, só obtém certa paz interior com seu trabalho fotográfico, desligando-se de si mesma ao registrar fotograficamente o caos externo. Quando Tomas passa a ser acossado pela polícia opressora depois da publicação de um artigo considerado subversivo pela censura, o casal muda-se para a Suíça, onde as traições do cirurgião continuam a acontecer e perturbar Tereza.
Em determinado momento, Tomas é levado a reexperimentar uma liberdade que já lhe era estranha, depois de tanto tempo ancorado ao “Es muß sein” (tem que ser assim) de Beethoven como representante do embaraço que seria o relacionamento amoroso. Tal experiência estimula o médico a repensar sua própria condição, fazendo com que não só a narrativa em si seja filosófica, como também seus personagens sejam arrebatados por pensamentos que recuperam grandes temas da filosofia. Em um dos mais interessantes arrebatamentos, Tomas transfere o paradoxo entre peso e leveza para o terreno do amor, questionando a suposta fatalidade dos relacionamentos que, se repensados, não são mais que a condensação de aleatoriedades, ou a “encarnação do acaso absoluto”.
O fato é que Tereza e Sabina representam polos extremos na vida de Tomas, opondo-se uma à outra assim como o peso e a leveza. Sua relação com aquela baseia-se no amor, sentimento que prepondera a dualidade entre o corpo e a alma ao mesmo tempo em que faz de tudo para dissipa-la. Tereza, idealista, luta pela individualidade no mundo coletivo, sobretudo porque esse mundo se faz presente em uma relação que deveria ser apenas entre ela e o cônjuge, representando o fardo de quem deposita grandes pesos até nos mínimos atos, prendendo-se ao seu casamento como que a uma tábua de salvação. Já Sabina, representante do que é leve, não agarra-se a nada que não a própria leveza, mesmo esta chegando a ser-lhe insustentável.
Sobre a dubiedade entre o peso e a leveza firma-se A insustentável leveza do ser. A partir dela e do eterno retorno nietzschiano, desencadeiam-se todas as reflexões que guiarão a narrativa. O romance descreve a vida humana como uma partitura musical, baseada em motivos que são executados com o ritmo e ênfase escolhidos pelo maestro. Filosofia, música, política, história, relações interpessoais e tantos outros temas ganham espaço no mais aclamado escrito de Milan Kundera. O autor tcheco chega a trazer para dentro do livro análises críticas de outras obras ficcionais, reformulando o gênero do romance e fazendo-nos pensar até que ponto a ficção se sustenta. Seria a leveza da literatura tão insustentável quanto a do ser?
A INSUSTENTÁVEL LEVEZA DO SER | Milan Kundera
Editora: Companhia das Letras;
Tradução: Teresa Bulhões de Carvalho;
Tamanho: 344 páginas.;
Lançamento: Abril, 2017 (atual edição).