Recentemente publicado pela Editora Âyiné, A leitura das cinzas, de autoria do polonês Jerzy Ficowski (1924-2006) e excelentemente traduzido por Piotr Kilanowski, é um livro raro. Contudo, antes de adentrarmos nas razões deste adjetivo, gostaria de trazer ao leitor algumas informações que considero importantes.
Até pouco tempo atrás, a literatura de testemunho polonesa era pouco conhecida pelo público brasileiro. Estas páginas da literatura polonesa dão voz àqueles que viviam em Varsóvia quando os judeus foram reclusos no gueto, dão voz àqueles que viram tudo, viram o Levante do Gueto, viram os trens da morte na Umschlagplatz.
“Tens pouco tempo / é preciso dar testemunho”, escreveu Zbigniew Herbert, também poeta e polonês, amigo de Ficowski. E a literatura polonesa deu (e dá) seu testemunho. Aos poucos, vão sendo conhecidos do público brasileiro grandes obras como Eu construía a barricada, de Anna Świrszczyńska (Editora Dybbuk, 2018, tradução do mesmo Piotr Kilanowski (pode-se ler uma interessante resenha aqui), e, numa perspectiva mais teórica, O Testemunho da Poesia, de Czesław Miłosz (Editora UFPR, 2012, tradução de Marcelo Paiva de Souza).
Antes que eu tente explicar as razões do “raro”, ainda gostaria de escrever brevemente sobre Jerzy Ficowski.
O nome de Ficowski costuma ser associado à obra de Bruno Schulz (1892-1942), especialmente por Regiony Wielkiej Herezji (Regiões da Grande Heresia, ainda sem tradução). Porém, grande injustiça literária é cometida com aquele que é chamado de Max Brod de Bruno Schulz quando sua obra poética jaz desconhecida. Ficowski é um autor refinado, profundo conhecedor e renovador da linguagem poética polonesa. O tradutor, no prefácio da obra, chamará atenção aos neologismos tendo por base frases comuns da língua, e dirá, num gracejo: “deixa o leitor maravilhado e o tradutor desesperado”.
Ficowski também traduziu para polonês poemas do iídiche, do romani e poemas de Lorca (ainda que não soubesse espanhol e tenha se baseado em versões em prosa para recriá-los). Ficowski certamente foi um artista genial que, tendo atravessado o Atlântico e falando português à sua altura, começa a ser reconhecido.
Sobra a consciência de ter sido testemunha da desumanização e assassinato de todas aquelas pessoas, restam ‘remorsos da terra’. Mas, especialmente, restam silêncios…
Agora o raro.
A leitura das cinzas é um livro cheio de vozes silenciadas e, especialmente, é um livro que causa um profundo e incômodo silêncio em quem o lê. Indefinível. A impressão que me causou foi a de eu ter sido tragado por uma espiral onde passado e presente se confundem, o tempo como que deixa de passar e, de súbito, o leitor vê a menina de 6 anos que mendigava, “com sotaque judeu / de fome”, morrendo; ouve as últimas sete palavras de uma criança que morreu na câmara de gás: “Mamãe! Eu fui bonzinho! Está escuro! Escuro!”.
Em que pese (e como pesa) isto, não há a estética crua que se vê, por exemplo, em Anna Świrszczyńska; quando lemos as cinzas, os corpos já foram incinerados, sobra apenas o vazio deixado por eles, apenas suas cinzas. Sobra o sentimento de impotência que permeia a obra:
“Não consegui salvar
nem uma vida
[…]
quero chegar a tempo
mesmo que tarde demais”
Como diz o eu-lírico, profundamente identificável com Ficowski. Sobra a consciência de ter sido testemunha da desumanização e assassinato de todas aquelas pessoas, restam “remorsos da terra”. Mas, especialmente, restam silêncios… silêncios das crianças e do dr. Janusz Korczak (ou Henryk Goldszmit) na Umschlagplatz… silêncios de Yankel, o fruticultor… silêncios de Rosa Gold, de Frycek… silêncios que calam, “palavras que não existem”. Quando chegamos ao final dos poemas, chegaremos ao ponto final de suas vidas.
E se palavras não existem, é necessário criá-las. O imperativo ético do mundo pós-Auschwitz talvez seja “tens pouco tempo / é preciso dar testemunho”. A poesia deste mundo já não pode ser poesia arcadista, não pode se dar ao luxo da inocência.
A poesia polonesa pós-Auschwitz é pródiga em apresentar esta verdadeira crise da linguagem, que não dá mais conta de nomear o que existiu. A shoah (termo hebraico), khrubn (termo iídiche), porrajmos (termo romani) não marca apenas a destruição da civilização, mas também da própria linguagem. É preciso recriá-la a partir das cinzas. Começar do zero. E a tarefa da própria linguagem será lembrar.
A leitura das cinzas também é um livro que se revolta. Contra quê? Contra o esquecimento. Talvez a melhor metáfora disso seja o bairro de Muranów, que foi erguido onde, outrora, havia o gueto. Ao andar por Muranów, o poeta pisoteia e, se se calar, mente. Nas notas, o tradutor nos dirá que frequentemente as ruas de Muranów são engolidas por buracos, como uma espécie de lembrete dos porões das casas do antigo gueto.
Ficowski dá voz aos “devorados pelas raízes dos pinheiros” e, depois de lê-lo, também em nós resta um pouco desta voz. Agora não poderemos mais nos calar – mesmo que ao redor haja um profundo e incômodo silêncio ou o mais ensurdecedor dos barulhos.
A LEITURA DAS CINZAS | Jerzy Ficowski
Editora: Âyiné;
Tradução: Piotr Kilanowski;
Tamanho: 160 págs.;
Lançamento: Abril, 2018.