Se é árdua a tarefa da leitura de poesia — os prazeres têm seus enganosos meandros —, a de escrevê-la é tecer a costura de um tecido que não tem fim, o diálogo entre tantas imagens, cenas e figuras, pretendentes de uma saga penelopiana que se revela por meio de pistas e chaves de interpretação.
O livro de Laura Erber, publicado ano passado pela Relicário, é esse jogo de pistas e chaves. A Retornada é um pequeno e imenso livro. Como se fosse um pequeno rio, onde não desconfiamos, à primeira vista, da sua profundidade. O livro de Erber é exatamente assim: este pequeno rio que, na hora do mergulho, revela-se uma imersão profunda e sem volta.
A epígrafe do livro é o ponto de revelação das costuras feitas por Laura: “Posso escrever poemas? Por uma espécie de contágio?”. A frase de Sylvia Plath é a chave que abre as possibilidades de leitura da obra. O conceito de contágio é este em que se transmite algo — quase sempre uma doença — pelo contato.
O contágio é a pista da primeira parte do livro, “Espécies de Contágio”. Todos os poemas dessa parte abrem-se com uma epígrafe — Heiner Müller, Marina Tsvetáieva, Ghérasim Luca, Mallarmé, Agnès Varda, e outros, são alguns dos nomes que emprestam os pontapés que estimulam o jogo poético de Laura. Nessa seção, a poeta joga com as frases, provoca-se com cada uma e delas faz brotar seus poemas, numa relação simbiótica de contágio — como esse fator que permite a paráfrase do pensamento, a apropriação das ideias que estão guardadas nas linhas alheias. O contágio aqui serve como vetor da poeta enquanto leitora e também como criadora, que é o ponto chave do fazer poético e literário.
O tema do retorno, esse que atravessa o livro de cabo a rabo, nesta primeira seção manifesta-se nesse diálogo bumerangue com as referências de Laura. É ela retornando às suas leituras, ao que lhe provoca, lhe estimula e lhe suscita a catarse da contingência poética. A luta se revela para escalar os muros de pensamento que já estão erguidos, subir e lá colocar mais um tijolo nessa enorme construção. As citações têm essa função de mundo já erigido mas que se reconstrói, tarefa de reconstrução que Laura toma pra si e a faz com uma qualidade de extrema potência. A organicidade da poesia de Erber é atestada assim que constatamos as porradas que levamos no decorrer da leitura. “Os poemas são ardências, são porrada”.
Numa troca de posições, na segunda seção, “O Céu de Vesterbo”, as epígrafes saem de cena para dar lugar às dedicatórias. Aqui Laura volta para seus dias na Dinamarca e confecciona sua poesia nos entremeios da memória. Até onde relembrar é voltar a viver o momento recordado? Qual é a força da imagem da lembrança? Nesta altura do livro, a poeta joga com a inevitabilidade da memória. Recordar é tão inevitável quanto a ideia de que “ninguém pode/ se recusar/ a respirar”.
O tema do retorno, esse que atravessa o livro de cabo a rabo, nesta primeira seção manifesta-se nesse diálogo bumerangue com as referências de Laura.
Aqui o contágio está em rememorar, em retornar-se a si, àquela que existia e não mais existe — o heraclitiano devir da mudança, onde quem se foi no ontem não se é no hoje. Recordar, lembrar, é contagiar-se da imagem que não existe como forma primeira mas que mantém sua existência em formas transmutadas. Nesta parte, a cadência do verso da poeta é outra, o seu ritmo se imiscui mais da poesia do que na parte inicial, que dialoga profundamente com a forma do ensaio. Aliás, esse trunfo é exitoso na poesia de Laura: o malabares que ela faz com as linhas que escreve impõe ao texto esse jogo de composição e decomposição das formas, onde o verso não está preso na própria imagem que metaboliza.
Encerrando o ciclo do seu retorno, a terceira seção carrega o título do livro. Em “A Retornada”, composta de dois poemas, naquele com título homônimo, divido em oito partes, a intimidade com morte — rodeando no ambiente hospitalar — brota como um jogo de silêncios que gritam. É nesse ambiente que se perde aquilo que lhe pertencia, que é “varrido com o lixo tóxico do hospital”.
Aqui os pontos — a pausa — somem e o que fica é somente as interrogações. O poema procura, se indaga, regurgita, engole de si o sumo da reflexão, do voltar-se pra si, num numa volta e revolta que retorna sem precisar, necessariamente, localizar-se. Uma espécie de centro sem centro do centro, uma descentralização do devires do existir.
“Os corpos esquecem?”, pergunta a poeta. A inevitabilidade do retorno da lembrança ganha potentes contornos neste poema que fecha o ciclo do regresso de Laura Erber, que estava há quase dez anos sem publicar poesia, e que volta, para citar o posfácio de Heloísa Buarque de Hollanda, como “uma mulher que se surpreende falando sozinha ao tentar dizer o prazer do prazer de se imaginar meio morta”.
Oblíquo e esquivo à formalização rasteira, o livro de Laura Erber é a exaltação das zonas cinzentas, das repostas que não se encontram na superfície. Uma obra de belíssima riqueza que preenche de vazios o leitor cheio de si — “todo leitor é um saco”, provoca a poeta.
“Se abríssemos as pessoas encontraríamos paisagens”, disse Agnès Varda numa das epígrafes da primeira seção. O mesmo acontece quando se abre o livro de Laura: as paisagens, neste conluio entre formas e disformas, são evocadas e nos dominam se quem as percebamos por inteiro. A poesia de Laura se dá na elaboração dos detalhes que se percebem somente depois do olhar demorado. E isso apenas os grandes artífices da poesia conseguem fazer.
A RETORNADA | Laura Erber
Editora: Relicário;
Tamanho: 60 págs.;
Lançamento: Junho, 2017.