Poucos assuntos têm sido tão abordados pelo jornalismo e pela literatura como a questão do estupro. Obras como Missoula, de Jon Krakauer, e Ela disse: os bastidores da reportagem que impulsionou o #MeToo, de Jodi Kantor e Megan Twohey, abordaram como o abuso contra mulheres se tornou quase institucionalizado em ambientes universitários e na indústria cinematográfica.
Aqui no Brasil, o livro A vida nunca mais será a mesma: cultura da violência e estupro no Brasil, da jornalista Adriana Negreiros, publicado pela Objetiva, pretende trazer o tema para âmbito nacional a partir de uma investigação minuciosa dos diversos ângulos pelos quais a cultura do estupro se espalhou e ainda sobrevive no país. Fala-se aqui de casos como o estupro matrimonial (quando uma mulher é violentada dentro do casamento), do chamado “estupro corretivo” (cometido contra lésbicas, numa perspectiva de “endireitá-las” à heterossexualidade), dentre vários outros tipos de violência.
Mas esta obra jornalística tem um elemento a mais: ele é escrito pela perspectiva de uma mulher que foi estuprada. Em relato bastante corajoso, Adriana Negreiros entremeia os diversos capítulos a partir da sua própria história. Em 2003, enquanto era jornalista da revista Veja, Adriana sofreu um sequestro relâmpago no estacionamento de um shopping em São Paulo e foi estuprada pelo sequestrador.
Sua vida inteira foi transformada a partir dessa quebra – embora, superficialmente, Adriana tenha conseguido seguir uma vida “normal”, com uma carreira, filhas e um casamento feliz. Mas seu relato é muito lúcido sobre aquilo que lhe foi tirado: “a partir da noite em que fui arrastada para a escuridão, tornei-me uma mulher cheia de medos (…). Esse medo insuportável e onipresente tirou a minha liberdade. Um homem que estupra uma mulher tira-lhe a liberdade para ser o que ela é. O estupro oprime, enfraquece, e é um bocado desconcertante pensar que um homem tem tanto poder sobre uma mulher”.
Esta obra jornalística tem um elemento a mais: ele é escrito pela perspectiva de uma mulher que foi estuprada.
Estupro, portanto, é uma questão de poder. Adriana vai contando, ao longo das páginas, sobre como suas relações foram transformadas a partir do episódio, como se ela carregasse consigo uma marca – a da mulher estuprada -, o que seria a primeira coisa que saberiam sobre ela e a definiria para os outros. A vítima, portanto, segue arrastando os danos. Como expressa o título do livro, nada mais é como antes.
A riqueza deste livro reportagem está no fato de que a jornalista une sua experiência (ou seja, tem lugar de fala sobre o tema), mas não reduz a obra à própria história. Ela costura o seu relato (que, conforme conta nesta entrevista para o site Congresso em Foco, configura como uma espécie de libertação ao encarar de frente esse trauma) com o de várias outras brasileiras. Há casos de mulheres casadas estupradas pelos cônjuges, de meninas violentadas por vizinhos ou por familiares a quem deveriam confiar, e mesmo o estereótipo mais “clássico” (e contraditoriamente mais raro) do estuprador como um homem desconhecido que agarra uma mulher quando ela menos espera.
Mas penso que o maior elemento de destaque de A vida nunca mais será a mesma está no fato de que ele se propõe a fazer um passeio pelas mudanças de legislação acerca do tema no Brasil. Descobrimos, por exemplo, que até o ano de 2003, o Código Civil brasileiro determinava a obediência da mulher ao esposo, num artigo que descrevia que “o marido é o chefe da sociedade conjugal”. Isso trazia a prerrogativa que homens pudessem cancelar o casamento se descobrisse que a esposa havia sido “deflorada” antes das bodas, ou permitia que o pai deserdasse uma filha “desonesta”. Outro caso inacreditável: até 2005, era possível escapar de uma acusação de estupro caso o homem se casasse com a vítima, pois, desse modo, o dano estaria “compensado”.
A obra ainda passeia por casos marcantes da mídia que ajudaram a naturalizar o estupro e o abuso contra mulheres como aceitável em alguma medida – tais como personagens da ficção, como Magda, de Sai de Baixo, as mulheres fruta, as danças eróticas de grupos como É o Tchan, que eram ensinadas até às crianças. Além disso, Adriana explica como o então deputado Jair Bolsonaro, no episódio em que ofendeu a deputada Maria do Rosário com a frase de ela não “merecia” ser estuprada, ajudou a capitalizar o ódio contra mulheres como uma plataforma eleitoral.
E como encerrar uma obra duríssima como essa? De forma muito franca, Adriana Negreiros não promete tirar qualquer tipo de discurso edificante que poderia confortar outras vítimas. Por isso mesmo, é de se desejar que A vida nunca mais será a mesma encontre muito mais leitores homens que mulheres.
A VIDA NUNCA MAIS SERÁ A MESMA | Adriana Negreiros
Editora: Objetiva;
Tamanho: 304 págs.;
Lançamento: Outubro, 2021.
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