Olhe em volta e contemple as construções do nosso tempo. Claro! Não precisamos nos preocupar com nada. Temos empregos, casas, vida social e saúde.
Todos são felizes agora.
Todos são felizes agora.
Todos são felizes agora.
Essa frase foi introjetada em nossas mentes durante a hipnopedia, o processo de aprendizado durante o sono. Fomos conduzidos a esse e a outros procedimentos enquanto éramos gerados e criados em nossas funções e castas. Castas sim, nossa sociedade sempre as teve, e elas são definidas e claras para todos – você e eu pertencemos à mais alta, os Alfa, nosso raciocínio é superior ao das demais, e também nossas riquezas, posições e porte físico. Não se incomode com essa manada de pobres Deltas quase olhando para o chão, eles foram condicionados a se sentirem bem quando suas cabeças estão abaixadas, sabem disso e não veem porque lutar contra a natureza da ciência.
Ciência, por favor, não finge que esqueceu. Logo após declararem a época de Nosso Ford (faça o sinal) e completarem o desenvolvimento científico, o mundo antiquado do século XX (e XXI também, existia algo parecido com isso) lentamente foi abandonado. Nossas castas são a amostra mais eficaz: para quê superpovoar o mundo desordenadamente, como naquele tempo caótico? Hoje são geradas pessoas em número suficiente, nossa ciência não falha; temos padrões físicos cultivados em laboratórios, podemos criar seres vivos com uma precisa jamais sonhada por aquele século.
Some aos padrões físicos os programas de condicionamento: hipnopedia, a evolução tecnológica de nossa época.
Some aos padrões físicos os programas de condicionamento: hipnopedia, a evolução tecnológica de nossa época, o direito de sairmos com quem quisermos do sexo oposto, isso é importante, cada um pertence a todos! Nada de conceitos antiquados como família e fidelidade, aliás, se você não tiver mais de um parceiro sexual frequente pode ficar um pouco… mal falado, digamos. Não é normal ser monogâmico, você pode experimentar quem quiser. Não pergunte como os antiquados viviam em … famílias, só por elas as novas séries de humanos nasciam… você já notou que nascer é uma palavra proibida e ofensiva, por isso a conto bem baixo para você. Mas você já faz parte do Admirável Mundo Novo.
Sente-se mal? Tontura, dor de cabeça, tristeza? Toma esse comprimido aqui, uma dose de Soma vai te ajudar. Antes de Ford (sinal) as sociedades tinham drogas e remédios para combater essas mazelas, mas aquele tempo… não funcionava. Sempre tinham efeitos colaterais, desde perda de consciência até irritações e até mesmo a ilegalidade das drogas. Mas nossa época veio e com ela o Soma, a solução perfeita! O governo distribui de graça, vicia bastante (outro dia tomei dez comprimidos de uma vez) mas é legalizada e não causa problema algum. Todos são felizes agora.
E aquele no canto… oh. Vem comigo. Sério, ele é um Alfa muito estranho, fora do padrão. Sua altura não combina com a casta, ele não experimenta ninguém há tempos, é um caso anormal. Colocaram doses erradas de fluídos no corpo dele em sua incubação, foi o que ouvi mas nunca fucei essa história. A existência dele em nosso mundo tão perfeito, simétrico, correto, evoluído é tão… anormal. Difícil explicar, mas a natureza cuida.Não tem como um ser isolado incomodar nossa estabilidade, embora ele devesse integrá-la. Voltemos as nossas funções, temos alguns tubos para cuidar. Civilização é esterilização.
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Leitor e leitora desta (c)asa virtual, ouso imaginar sua reação após ler esse texto. Espero que case com uma das muitas reações possíveis ao Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, uma narrativa poderosa fruto de receios e paranoias perante o progresso tecnológico. Publicado em 1932 e hoje considerado uma distopia, ainda perturba muitas pessoas graças a sua identidade forjada com estudos, entrelinhas e ironias, somadas a um pessimismo atroz e uma capacidade de assombrar – e isso pode incomodar mais do que distinguir os “certos” e “errados” das previsões do autor.
ADMIRÁVEL MUNDO NOVO | Aldous Huxley
Editora: Biblioteca Azul;
Tradução: Vidal de Oliveira;
Tamanho: 312 págs.;
Lançamento: Janeiro, 2014 (atual edição).