Vamos acompanhar dois protagonistas entre muitos personagens, como se os demais, embora também importantes à trama, impulsionassem os acontecimentos deles. Com o avançar do enredo, podemos traçar no mínimo três pontos ao descrevê-los: o que acham que são, como julgam serem vistos e o que se tornam. Principalmente por serem Anna Arkadyevna Karenina e Konstantin Dmitrievich Levin, do romanção Anna Karenina, escrito por Liev Tolstói e publicado em 1878.
Primeiro, a dama que dá nome ao livro. Ela não aparece tão no começo, e sua chegada parece ser a de alguém até então fora do que estava sendo contado, mas ela pode mudar os rumos da situação inicial. Fascínio, magnetismo, quem sabe? A senhora Karenina é capaz de resolver o problema – dos outros, claro. Quando a situação acaba, partes da narrativa são dedicadas à Anna, que parece usar uma armadura impenetrável de orgulho, a qual se soma uma espada forjada à influência e alguma imposição.
O problema não é Anna Karenina usar armadura, pois na sociedade onde ela vive todos se protegem de alguma coisa – o marido dela é só mais um cavaleiro errante, escondido atrás de um cargo ridículo, misto de sustento da casa e posição ao qual dá mais importância do que seus pares, e mais do que a própria esposa recebe. O conflito recomeça quando a couraça da madame Karenina quebra.
Anna Karenina é dessas experiências impactantes de leitura que marca cada leitor por uma razão.
Mesmo sem ela ter consciência de tudo, ou tendo e não expressando nos termos desse cronista literário que te escreve, a suposta força se revela uma fragilidade gigante, incapaz de resolver os novos acontecimentos de sua vida. É como se aquela força imponente, impressão lá do começo, fosse tão ficcional quanto a própria obra; uma armadura feita de latão que fere sua dona em vez de a proteger. Ela gostaria muito de destruir o que sobra e forjar uma nova (tentar, pelo menos), mas a cada passo se vê presa e sente como se o mundo conspirasse contra ela – às vezes, abertamente. Não é tão fácil se livrar de uma couraça, tanto faz o nome: posses, posição, estabilidade, aparência, sociedade, família, casos, você pode escolher – é um privilégio que Anna Karenina não tem.
O outro protagonista desse romance é Levin. Parece boa gente, não é de arrumar tantas desavenças enquanto se afirma perante os demais de seu círculo, embora este o dê constantes razões para se irritar. Ele parece deslocado, pois muitos de seus pares, na idade dele, tinham empregos, casamentos e demais atividades pelo menos começadas, e Levin sequer parece ter uma ocupação fixa.
É como se o Levin das primeiras partes do romance nos cativasse justo por isso, por não ter certezas; ele não se apresenta com a soberba dos demais, mal sabe o que gostaria ou poderia fazer e vive com dúvidas. Esse sentimento começa a mudar justo após o que ele considera um fracasso, e é quando sua couraça racha. Levin se mostra tão azedo e constrangido que mal toca no assunto, mesmo à força; fala do “erro”, mas não parece ter se resolvido com isso. Entre idas e vindas geográficas e mentais, Levin aparenta buscar alguma coisa, mesmo sem dar o braço a torcer e dizer o que é – até para si mesmo.
Alguns lentos capítulos adiante no romance, a “busca” de Levin termina. Tem a ver com a anterior, quase uma redenção do tal erro que julga ter cometido, talvez um reparo aos olhos dele. Se você ler Anna Karenina e se empolgar com esse personagem, a nova situação é a sua torcida dando certo. O que Levin, ingenuamente, não imagina é que aquilo é apenas o começo de situações muito complexas, nem sempre difíceis ou com o peso que ele as dá, apenas complexas e de acordo com o novo estágio de sua vida, o levando a novas dúvidas.
Anna Karenina é dessas experiências impactantes de leitura que marca cada leitor por uma razão. Poderíamos ficar de papo sobre ela sob qualquer aspecto, de painel temporal, retrato de sua época, influência até hoje, importância no conjunto da obra de Tolstói – ou o recorte que escolhi para esta crônica, o desenvolvimento desses personagens. A linha que mencionei no começo do texto é um questionamento de quantas Annas e Levins cabem nos escritos na obra, em comparação com o que eles eram e com o que se tornam.
ANNA KARENINA | Liev Tolstói
Editora: Companhia das Letras;
Tradução: Rubens Figueiredo;
Tamanho: 808 págs.;
Lançamento: Julho, 2017 (atual edição).