Não é fácil reportar tragédias. Mas a jornalista Daniela Arbex talvez esteja se tornando o grande nome brasileiro dentro deste filão bastante específico: o das reportagens que carregam o leitor para dentro de uma cena em que horror impera e um trauma imensurável acomete uma grande quantidade de pessoas.
Foi o que aconteceu no livro reportagem Holocausto brasileiro, de 2013, em que investiga a história do hospital psiquiátrico Colônia de Barbacena, onde morreram mais de 60 mil pessoas por conta de maus tratos, e em Todo dia a mesma noite, de 2017, que reconta o incêndio da boate Kiss, em Santa Maria, que matou 242 pessoas e vitimou milhares de famílias.
Seu novo livro reportagem, lançado este ano, é mais uma vez uma reconstituição de uma das piores tragédias vividas pelos brasileiros. Arrastados – os bastidores do rompimento da barragem de Brumadinho, o maior desastre humanitário do Brasil propõe-se, assim como os livros anteriores da jornalista, nos transportar para o exato momento em que os trabalhadores que estavam na mina do Córrego do Feijão, em Brumadinho, foram surpreendidos pelo rompimento da barragem, em um tsunami de lama que os arrastou por quilômetros e destruiu tudo e todos que estavam na frente.
O “contrato” que parece ter sido postulado por Daniela Arbex com seus leitores, nesta e noutras obras, é este: levá-los a sentir o sofrimento de muita gente que ou perdeu sua vida, ou, de uma hora para a outra, ficou sem os seus.
É importante dizer que o gênero livro reportagem – ou seja, um livro com natureza jornalística, em que tudo o que se conta pode, em alguma medida, ser verificado – não é apenas uma única coisa. Uma vez que as técnicas jornalísticas são diversas, o repórter pode construir sua apuração e sua narrativa de inúmeras maneiras.
Sob esta perspectiva, os métodos usados no trabalho de Daniela Arbex são bastante rigorosos, e envolvem não apenas a pesquisa, mas o mergulho nos lugares apresentados na reportagem. Seu modus operandi parece sempre conspirar a um objetivo central que flerta com o impossível: reconstituir a vivência dos que estavam lá no momento em que tudo aconteceu.
Para fazer isto, a jornalista precisou conversar com uma grande quantidade de fontes – entre sobreviventes, parentes das vítimas e membros da equipe de resgate – no intuito de criar uma narrativa coesa e focada no detalhe. Sabemos, por exemplo, o que dois funcionários conversaram no ônibus que os levava até a mina no fatídico 25 de janeiro de 2019, e qual o bolo que uma personagem havia preparado para dividir com os colegas.
Obviamente, um livro reportagem deste tipo é uma espécie de crônica de uma morte anunciada. Nós já conhecemos o rumo da história que é contada – sabemos que o dia normal de trabalho daqueles operários que saíram de suas casas para executar suas labutas não acabará bem.
Mas o “contrato” que parece ter sido postulado por Daniela Arbex com seus leitores, nesta e noutras obras, é este: levá-los a sentir o sofrimento de muita gente que ou perdeu sua vida, ou, de uma hora para a outra, ficou sem os seus.
A culpa desta tragédia, como o imbróglio decorrente da tragédia tem esclarecido desde então, é da própria mineradora Vale e dos protocolos falhos de segurança que executou, tendo em vista a obtenção dos lucros do minério ao custo de vidas humanas que foram sacrificadas sem que esses sujeitos jamais soubessem de fato o risco que estavam correndo. Neste sentido, a parte final de Arrastados traz um importante compilado sobre as responsabilidades e a negligência dos envolvidos.
Foco no trabalho de resgate
No meu ponto de vista, uma das partes mais ricas deste livro reportagem diz respeito à cobertura dada às centenas de profissionais que se envolveram no resgate dos corpos das vítimas. Talvez nem todos saibam, mas a avalanche de lama foi tão violenta que decepou a maior parte das vítimas em muitos segmentos que ficaram perdidos no solo, gerando um tipo de luto quase impossível de por em palavras.
Até a época da publicação de Arrastados, havia ainda 7 pessoas não localizadas, e que foram nomeadas pelos bombeiros como “joias”. Para as famílias dessas vítimas, a dor de não poder enterrar o ente amado vai além do indizível. E essa dor aplaca também os que têm a missão de lidar com situações emergenciais. Então talvez uma das partes mais interessantes do livro seja o foco dado aos bombeiros, aos médicos legistas e aos tantos voluntários que também deixaram suas famílias e se dedicaram, de forma admirável, para devolver os corpos dos mortos para os que ficaram.
Obviamente, um livro que lida de forma abertura e dura com uma tragédia deste porte – que, vale lembrar, não envolve um acidente, mas sim a decorrência da negligência e da ganância de uma multinacional – é uma abordagem obrigatória na esperança que fatos como esse não tornem a acontecer.
Mas, se for possível apontar uma fragilidade da obra, destacaria alguns elementos linguísticos usados na escrita de Arrastados que poderiam ser classificados como lugares-comuns literários, e acabam soando um tanto forçados – como dizer que uma mulher não tinha asas mas sabia voar, ou que um senhor era muito humilde e tinha uma fé inabalável. Creio que a história já seria comovente o suficiente sem a necessidade desses recursos.
ARRASTADOS | Daniela Arbex
Editora: Intrínseca;
Tamanho: 328 págs.;
Lançamento: Janeiro, 2022.