Se Borges é mestre, Cortázar é professor. Essa é a certeza que Aulas de Literatura: Berkeley, 1980 (Record, 336 págs) nos deixa. O livro mostra um Julio Cortázar (1914 – 1984) diferente, próximo ao público, mas distante do homem das letras. As oito palestras na universidade norte-americana acabam com a mística de um Cortázar isolado – ainda que se mantenha um sujeito discreto e quase informal.
O primeiro tema do autor de O Jogo da Amarelinha é “os caminhos de um escritor”, em que se debruça na descoberta do ofício. Para Cortázar, mais importante que a inspiração é a inteligência, a maior ferramenta de um escritor. No segundo e terceiro cursos, o argentino se dedica ao conto fantástico. Muito prático, usa seus próprios trabalhos como exemplo, abre espaço para perguntas – perguntas às quais responde com certo cuidado para se fazer entender. O quarto tema é justamente o oposto: o conto realista. Depois, explora a musicalidade na literatura. Como para qualquer um de seus leitores, é impossível não pensar em “O Perseguidor”, conto que fecha As Armas Secretas, e que remonta à história de Johnny Carter, músico de jazz inspirado em Chet Baker. Mas Julito vai além e apresenta à plateia uma verdadeira salada de referências e sabores. “O elemento de criação permanente no jazz, esse tão belo fluir da interminável invenção, pareceu-me uma espécie de lição e de exemplo de escrito”, afirma a certa altura. No sexto capítulo, O Jogo da Amarelinha é que ganha espaço. A ludicidade e os desdobramentos da literatura são postos à mesa de forma muito honesta e clara. Cortázar não parece ter medo de revelar seus segredos.
Aulas de Literatura é um bom percurso para entender o autor de Bestiário enquanto leitor. Suas falas são manuais de compreensão de sua própria obra. O homem que está à frente do público não esconde a insegurança e não poupa as referências que usa em seus contos e romances. Cortázar é capaz de compartilhar, ainda que com desconhecidos, seu universo íntimo. Essa estratégia estreita laços e quebra barreiras. Em uma comparação simples e incorreta, é impossível imaginar Borges com tamanha desenvoltura. Como todos na sala, Cortázar está lá para apreender.
Se Borges é mestre, Cortázar é professor. Essa é a certeza que Aulas de Literatura: Berkeley, 1980 nos deixa.
O sétimo encontro continua o tema levantado anteriormente, com a adição de dois livros menos conhecidos: O Livro de Manuel e Fantomas Contra los Vampiros Multinacionales. O bate-papo acaba por tornar-se uma introdução do próprio autor – uma espécie de prefácio falado. Quanto mais se aproxima da última aula – em que fala sobre erotismo –, mais próximo se torna de seus leitores. Poucas foram as vezes em que Cortázar foi visto tão à vontade. Nem mesmo em sua famosa entrevista ao programa A Fondo.
Gavetas bojudas
Quando do lançamento de Papéis Inesperados, um crítico brasileiro afirmou que a publicação se aproveitava da síndrome da gaveta bojuda, ou seja, dos textos rejeitados ou não terminados pelo autor. Do mesmo crime foi acusado O Original de Laura, de Nabokov, e tantos outros livros que só ganharam as livrarias após a morte do escritor. A acusação é seria, mas não se aplica às aulas cortazianas. Tudo ali está recheado de sentido e um porquê. Essa não é uma defesa (quem disse que Cortázar precisa ser defendido de algo?), e sim uma mera afirmação.
Como A Fascinação das Palavras, lançado no ano passado, as conferências em Berkeley nos dão uma nova dimensão – muito mais humana – de quem foi aquele homem, considerado o segundo maior escritor da Argentina.
https://www.youtube.com/watch?v=C0nW-OTzvlw
AULAS DE LITERATURA: BERKELEY, 1980 | Julio Cortázar
Editora: Civilização Brasileira;
Tradução: Fabiana Camargo;
Tamanho: 336 págs.;
Lançamento: Outubro, 2015 (2ª edição).