Engana-se quem pensa que todos os horrores da ditadura civil militar brasileira já estão documentados. Há muitas tragédias ainda enterradas – seja pelo esforço dos militares para que não houvessem registros, seja pela morte das pessoas que guardavam algumas dessas histórias. Em Cativeiro Sem Fim – As Histórias dos Bebês, Crianças e Adolescentes Sequestrados pela Ditadura Militar no Brasil (Editora Alameda, 2019), o jornalista Eduardo Reina traz luz a um dos aspectos mais horrendos e desconhecidos deste período.
Em um trabalho que levou cerca de duas décadas, Reina levantou 19 casos de crianças que foram retiradas de suas famílias por militares. 11 desses sequestros estavam ligados a filhos de pessoas ligadas à Guerrilha do Araguaia, movimento de resistência criado pelo PCdoB que existiu na região amazônica. Outras cinco crianças eram indígenas.
Mas qual era o objetivo dos militares em sequestrar crianças? A resposta à pergunta leva a um dos aspectos mais sombrios da ditadura, que envolvia replicar métodos de outros países que reconheciam que esmagar os inimigos (ou seja, os que resistiam aos governos autoritários) deveria ir muito além da morte. “Os sequestros de bebês, crianças e adolescentes filhos de militantes políticos compõem uma lógica de guerra (…) matar sem que houvesse a morte”, escreve.
Ou seja, apagar os subversivos dizia respeito também acabar com seu legado. Aos pais sobreviventes, restaria a tortura de nunca mais saber dos filhos, tendo que conviver com “o desaparecimento e o desaparecimento do desaparecimento”. Já as crianças seriam doutrinadas em uma nova visão de mundo, conservadora e servil. A ideia era imputar a elas uma ideologia contrária à dos pais, algo considerado legítimo frente à ameaça comunista (e, se parecer muito escandaloso, não há tanta distância assim do esforço feito por certas forças políticas para limitar acessos a livros considerados desviantes do que seria a “moral” recomendada às crianças).
Obviamente, o plano estipulado pelos militares não dá certo, e o que acaba ocorrendo é a geração de pessoas traumatizadas que, enquanto eram crianças, passaram por situações terríveis e tiveram seu futuro maculado para sempre pelo sofrimento. As que não foram feridas fisicamente, enfrentaram a vida dentro de um limbo identitário em que não sabem quem são.
Um sofrimento para além da morte

Cativeiro Sem Fim é um registro potente e vivo que precisa ser visitado para que tenhamos sempre em mente que os horrores dos governos autoritários vão além de suas vertentes mais noticiadas.
De todos esses casos, Eduardo Reina conseguiu entrar em contato com 6 deles, que são entrevistados em capítulos individuais dedicados às suas histórias. É difícil pontuar qual deles seria mais terrível. Todos eles levam à convicção de que não há qualquer reparação possível ao que foi feito às crianças e às suas famílias.
Há, por exemplo, o caso de Juracy Bezerra de Oliveira, roubado de seus pais por engano: os militares acharam que ele era o menino Giovani, filho do líder guerrilheiro do Araguaia Osvaldo Orlando da Costa, o Osvaldão. Em comum com a outra criança, havia só o fato de que tinha a pele morena e que sua mãe também era branca e tinha olhos claros.
Dentre as violências sofridas por Juracy, está a ter sido jogado numa fogueira por um militar com raiva de seu suposto pai, o que o deixou com uma mão permanentemente atrofiada. O verdadeiro filho de Osvaldão, Giovani, também foi levado e sua mãe foi morta, fazendo com que o pequeno, que tinha apenas 6 anos, ficasse sozinho com uma irmã ainda bebê.
E para quem ainda se fia na justificativa da “ditabranda” (como uma possível desconfiança de que, talvez, para algumas dessas vítimas, foi a chance de ter uma vida melhor com uma nova família), há o caso paradigmático de Rosângela Paraná, que não sabe onde nasceu nem sua idade. Ela foi entregue a uma família de militares, e criada por Odyr de Paiva Paraná, ex-soldado do exército que foi motorista de Ernesto Geisel.
Rosângela descobriu que era adotada apenas em 2013, após uma discussão familiar. Os Paraná guardam até hoje os segredos que revelariam sua identidade real. Debilitada fisicamente, ela segue em busca de sua verdadeira história. “Hoje vivo na angústia de não saber quem sou, quantos anos tenho, e sequer saber quem foram ou quem são meus pais. Todos se negam terminantemente a falar sobre esse assunto. Só desejo saber quem sou, e onde está a minha família. Acredito que esse direito eu tenho, depois de sofrer tantos anos. Hoje só sei que sou um ser humano que nada sabe sobre seus pais”, afirma, em depoimento a Eduardo Reina.
Cativeiro Sem Fim é um registro potente e vivo que precisa ser visitado para que tenhamos sempre em mente que os horrores dos governos autoritários vão além de suas vertentes mais noticiadas. Frente ao aniversário de 60 anos do golpe militar, o livro de Eduardo Reina é um lembrete de que o mal causado pelos grupos defensores das ideologias conservadoras segue à espreita – sempre com uma possibilidade de repetição.
CATIVEIRO SEM FIM | Eduardo Reina
Editora: Alameda;
Tamanho: 304 págs.;
Lançamento: Março, 2019.
ESCOTILHA PRECISA DE AJUDA
Que tal apoiar a Escotilha? Assine nosso financiamento coletivo. Você pode contribuir a partir de R$ 15,00 mensais. Se preferir, pode enviar uma contribuição avulsa por PIX. A chave é pix@escotilha.com.br. Toda contribuição, grande ou pequena, potencializa e ajuda a manter nosso jornalismo.