Diante das estantes em parte vazias de um recém inaugurado espaço de leitura na cidade, os olhos corriam pela paupérrima seção “Literatura Paranaense”, uma metade de prateleira com bem menos de cinquenta livros. Depois de Leminski-Leprevost, antes de Tezza-Trevisan, Snege era o que se lia na lombada de um livrote daqueles que quase passam despercebidos. Jamil Snege. Até aquela tarde de setembro de 2012, um ilustre desconhecido do meu repertório literário. Tomei o livro em mãos. O título, sobreposto a uma ilustraçãozinha sem-vergonha, parecia esconder-se de leitores mais distraídos. Como tornar-se invisível em Curitiba. Fazia sentido não chamar a atenção.
Li as crônicas da coletânea, tão breve quanto magnética, em um só fôlego. Os textos, conforme pesquisei mais tarde, haviam sido publicados no Caderno G da Gazeta do Povo no final da década de 1990. Tinham um tanto de rebuscamento exagerado. E muito de humor. De sarcasmo. De cinismo. Eram ótimos. Eram ácidos. Separei um deles para compartilhar com meus colegas de trabalho. “Cuidado, seu filho pode ser um intelectual” era uma espécie de deboche sobre a falta de interesse dos jovens brasileiros por livros. Entre funcionários de um programa de incentivo à prática de ler, o texto poderia operar como um manifesto crítico em favor das letras. Era, portanto, importante dividi-lo – ou melhor, multiplicá-lo. Assim, mediei a minha primeira roda de leitura. Assim, mediaria outras dezenas de rodas utilizando o mesmo texto, sobretudo com professores.
Mas foi a crônica-título, a melhor e mais corrosiva dentre todas, que me atravessou e me reduziu a vidro nesta cidade cheia de pessoas invisíveis. “Cada conquista, cada livro publicado, cada poema, escultura ou canção, cada tela, espetáculo, disco, filme ou fotografia (…) – o seu grau de invisibilidade aumenta em Curitiba”. Genial. Tal como eram geniais outros textos e abordagens do livro. Gostei do Jamil. Não a ponto de adorar. Naquela primeira e, hoje penso, desatenta leitura, a couraça de tio sabichão, das certezas ornamentais, frases em ordem indireta e palavras pouco prováveis, fez mais barulho do que a sagacidade de sua ironia.
Tempo depois, por força do daimon ou coisa assim, “o turco” teve outra chance comigo. Eu, que estava então me iniciando como mediadora, fui acompanhar uma atividade de um grande parceiro, Péricles Arthur. O que você vai ler com as meninas hoje, Pépe? Jamil Snege. Cara, não sei por que tanta onda em torno do Jamil, todo mundo da Fundação resolveu ler Jamil. Você já leu alguma coisa dele? Li sim, Como tornar-se. Só isso? Só isso. Ele é muito mais do que isso. Bom, eu faria um ciclo com a obra completa do Leminski, chamaria muito mais atenção. Todo mundo conhece Paulo Leminski; as pessoas precisam conhecer Jamil Snege.
Em roda, o excelente “Minha mãe se veste para morrer”, seu último conto. É. Eu também precisava (re)conhecer o grande Jamil. Logo resolveria frequentar o “Obras Completas – Jamil Snege”, um ciclo que a Daniele Cristyne estava desenvolvendo na Casa da Leitura Augusto Stresser. Participei dos últimos cinco ou seis encontros. Tive a oportunidade de descobrir Viver é prejudicial à saúde (1998) e Os verões da grande leitoa branca (2000), além de reler algumas crônicas de Como tornar-se (2000). Três livros, três estilos, três versões de um autor multifacetado, que transita da dramaturgia ao conto, da crônica cotidiana à prosa poética com maestria. O Jamil não era só o tio sabichão dos textos da Gazeta. Esta, aliás, foi a mais valiosa lição que aprendi sobre ele: eis um escritor volúvel, não-rotulável e (por isso) incrível. Passei a adorá-lo.
Um contista, um cronista, um romancista, um dramaturgo, um publicitário. Um boêmio inveterado. Este é o Jamil que, ainda na infância, manifestou o tal do ‘irreprimível pendor às coisas do espírito’ e apaixonou-se pelas letras.
No ano passado, li “O jardim das coníferas”, talvez o mais lírico de seus textos. Agora em 2015, nesta série “Pinheiros-do-paraná”, quis encarar uma outra faceta do grande “anti-herói curitibano”, como o qualificou o jornal Cândido em edição que lembrou os dez anos de morte do autor, em maio de 2013 (leia aqui). A escolha foi por Como eu se fiz por si mesmo, apanhado de memórias lançado em 1994 e considerado por parte da crítica um dos textos mais interessantes da literatura brasileira dos últimos 30 anos.
Um contista, um cronista, um romancista, um dramaturgo, um publicitário. Um boêmio inveterado. Este é o Jamil que, ainda na infância, manifestou o tal do “irreprimível pendor às coisas do espírito” e apaixonou-se pelas letras; um Jamil que, segundo o próprio, desde cedo desenvolveu o humor, a ironia e o cinismo e passou a usá-los sem piedade; o Jamil que em Como eu se fiz por si mesmo transformou suas experiências – das mais bizarras e/ou escatológicas às mais melancólicas – em ficção. Em humor da melhor estirpe.
O autor, personagem de si mesmo, por si mesmo pereceu sobre o “ritmo binário” de uma existência profissional dividida entre a arte (destino) e a publicidade (carreira). Prestar atenção a essa dicotomia presente em muitos de seus textos talvez seja uma das chaves para entender a obra de Jamil Snege. “O destino é nocivo à tribo. A carreira é nociva a você”. Tirando sarro de sua amargura e sendo implacável consigo e seus pares, Jamil entrega ao público uma novela autobiográfica repleta de ironia, que percorre os principais caminhos de suas carreiras – seja a do renomado publicitário, seja a do literato que preferiu permanecer à sombra do mercado editorial, financiando com recursos próprios a publicação de seus livros.
Mas, não se engane, Jamil não é dois, é vários. As muitas vozes de um só homem ecoam ao longo da narrativa, em um vai-e-vem por diferentes estilos literários. Há capítulos que transbordam metafísica, metáfora, poesia. Capítulos em que a narrativa ágil, das máquinas de escrever da publicidade e do jornalismo, dita o ritmo das frases. Passagens em que o tio sabichão dá o ar da sua graça, mais empolado e sarcástico do que nunca.
Além disso, Como eu se fiz por si mesmo é um passeio por recortes não-lineares da vida do autor e também pela Curitiba soturna, dos bares, orgias e outros notórios notívagos ou seres invisíveis de uma cidade de aparências, transparências, opacidades. Ler o livro é experimentar o processo criativo de um homem da geração de Wilson Bueno, Walmor Marcelino, Roberto Gomes, Domingos Pellegrini Jr., Jaques Brand, Fabio Campana, Luiz Solda, Alice Ruiz e do próprio Leminski – rival, há quem diga -, os pulhas a quem dedicou “a bosta deste livro”. Colegas do escrever, “tentativa vã, desesperada, de exorcizar esses demônios e arrancar deles um sentido”.
Terminei a leitura com os votos renovados. Jamil é um dos nossos grandes. Pena que sua obra, embora decisiva para muitos escritores contemporâneos (Marcelino Freire, por exemplo, é um fã crônico; Cristovão Tezza, seu grande pupilo), ainda permaneça relegada aos poucos exemplares das edições independentes custeadas pelo autor. Li Como eu se fiz em uma cópia de xerox na horizontal, péssima para manusear, guardar. Os herdeiros ainda não chegaram a um entendimento sobre como trabalhar o legado do turco (leia aqui). Republicar Jamil é imprescindível. Assim como é preciso dividi-lo, multiplicá-lo, (re)descobri-lo. Sempre.
Como tornar-se leitor de Jamil Snege
Por Daniele Cristyne | Especial para Escotilha
Em 2013, a Coordenação de Literatura da Fundação Cultural de Curitiba propôs à sua equipe de mediadores a continuidade dos ciclos de leitura “Obras Completas”, um projeto com o objetivo de promover a leitura e a discussão da produção literária paranaense, de modo a difundir e valorizar os autores locais. A tarefa, de início, parecia árdua. Pesquisar, ler e analisar toda a publicação de algum escritor do estado, para depois compartilhar os textos com o público em rodas de leitura.
Escolhi por intuição. Escolhi Jamil. E Jamil tornou tudo mais fácil. Se o “turco” era querido entre seus amigos, a mesma empatia é capaz de produzir entre seus leitores. Como quem conta uma piada acidamente inteligente na mesa de bar no início da noite e chega ao lirismo filosófico no final dela. Ler sua obra completa, de Tempo Sujo (1968) a Como tornar-se invisível em Curitiba (2000), foi como ganhar um presente. Desembrulhar seu amadurecimento literário, suas experimentações de linguagem e, enfim, atestar sua genialidade. Ler Jamil é ler Curitiba, com suas contradições de grandiosa província; é ler o vocábulo difícil e o palavrão, na mesma frase; é ler a história por trás da literatura paranaense, com seus colegas e jovens discípulos; é ler a poesia pura com alguma escatologia; é ler as relações humanas na sua forma pitoresca; é ler, por fim, e porque não, um pouco de si mesmo.
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Daniele Cristyne é escritora, musicista e mediadora de leitura. Há cinco anos atua no Programa Curitiba Lê, desenvolvido pela FCC. É responsável pela Casa da Leitura Augusto Stresser, no Parque São Lourenço.
COMO EU SE FIZ POR SI MESMO | Jamil Snege
Editora: Travessa dos Editores;
Tamanho: 276 págs.;
Lançamento: Janeiro, 1994.
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