Você conhece a sensação de vazio? Vazio existencial mesmo, aquele que nos vemos procurando o preenchimento com nomes, rostos, bocas, corpos, amores improváveis e álcool. Conhece? Um dos últimos lançamentos da agora finada Cosac Naify, Como o Diabo Gosta, obra do escritor gaúcho Ernani Ssó, é vazio, ou nos deixa vazios, ainda não defini muito bem a sensação deixada por seu terceiro romance. O autor, muito conhecido por suas traduções (como a de Dom Quixote para a Companhia das Letras), retornou dezessete anos após O Emblema da Sorte nos trazendo Camilo, o protagonista desesperançado de sua obra.
Camilo é um personagem complexo. Sua construção talvez seja melhor que a obra em si. Ele é conflituoso, um tanto niilista, mas absurdamente existencialista. Ou seja, contraditório como a própria vida e suas infinitas possibilidades. Sua angústia em aceitar a ausência de Bruna, sua musa, seu amor, sua inspiração, origina um vazio, uma obscuridade, uma depressão latente, a qual ele procura esvaziar em copos, em maconha, em sêmen.
Em Como o Diabo Gosta, Ernani Ssó nos convida a um passeio por Porto Alegre. Mas uma Porto Alegre que não se desnuda, não se escancara, apenas se insinua, fazendo com que consigamos construir uma cidade alternativa em nossa cabeça, ainda que saibamos que se trata (ao menos na literatura) de uma cidade física, existente, real. Camilo, o personagem, faz algo semelhante com sua Bruna. Ela existe, ou ao menos ele quer que creiamos que ela exista. Acontece que, tal como na situação da cidade, Bruna é “alternativa”, é encontrada em outros nomes, em outros corpos. Instintivamente, Camilo precisa preencher essa lacuna, e o faz com várias pessoas. Não necessariamente mulheres, não necessariamente de forma sexual, mas essencialmente de forma superficial.
Sua angústia em aceitar a ausência de Bruna, sua musa, seu amor, sua inspiração, origina um vazio, uma obscuridade, uma depressão latente, à qual ele procura esvaziar em copos, em maconha, em sêmen.
A construção narrativa feita por Ernani Ssó não é linear. Desta forma, encontramos vários personagens ao longo de suas 283 páginas, que parecem se repetir, especialmente na forma como a figura feminina é apresentada: 50% sacra, 50% secular. É bom deixar claro que isso não torna a obra confusa ou pretensiosa, pelo contrário.
Vamos percebendo ao longo de Como o Diabo Gosta que é um mecanismo para que compreendamos o que é o vazio para Camilo. Ele é cíclico, é imutável, ainda que as relações sejam estabelecidas de formas diferentes. Cada personagem é um traço de Bruna, um pedaço do que foi deixado por ela no caminho, na vida do protagonista.
O sugestivo nome, Como o Diabo Gosta, diz mais sobre a vida de Camilo, deixada ao acaso, nas mãos da sorte, e não que sua literatura seja fraca, feita de qualquer jeito. Ernani Ssó tempera suas linhas com uma dor pungente, mas que não se escancara, não é gritada nas linhas do livro. Ela surge é com a leitura, com a confirmação de que também podemos estar vazios, e que isso não é preenchido com coisas mundanas, tampouco com religiosidade, mas talvez com a necessidade de que saibamos apreciar a solidão, ao invés de temê-la, ao invés de acreditar que no outro somos completos. Enquanto o personagem procura compreender isto, ele vive vazio, como o diabo gosta.
COMO O DIABO GOSTA | Ernani Ssó
Editora: Cosac & Naify;
Tamanho: 288 págs.;
Lançamento: Junho, 2015.
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