Todos nós, os fãs do diretor canadense David Cronenberg, sabemos que seus filmes se baseiam na constituição do mesmo universo perturbador, em que vários temas se cruzam, como o fascínio cego pelas tecnologias e suas interfaces com a biologia, com o sexo e com a violência. Pois bem: Consumidos, o primeiro romance de Cronenberg, é, sem sombra de dúvida, uma obra que faz jus à sua estética.
Trata-se de uma trama bem difícil de ser resumida, mas tentarei aqui: ela gira em torno de um casal (que quase nunca se encontra – a maior parte de suas interações se dá por tela), a jornalista Naomi e o fotógrafo Nathan. Ambos têm no bizarro o mote de suas profissões.
No início do livro, Naomi está obcecada pelo assassinato da filósofa francesa Célestine Arosteguy, que foi morta e devorada (literalmente) pelo seu marido, o também filósofo Aristide Arosteguy (a dupla é, claramente, uma versão mórbida de Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir), que está foragido. Já Nate está fazendo uma cobertura fotográfica em uma clínica clandestina que trata pacientes com câncer de formas que podem ser vistas como pouco éticas.
Ao fazer sexo com uma das pacientes com câncer, Nathan descobre que pegou dela uma doença venérea que teria sido extinta desde os anos 60. Resolve então que essa seria uma boa desculpa para ir até o Canadá, atrás do médico que descobriu o tal Mal de Roiphe, para fazer uma reportagem sobre cientistas que tiveram seus nomes marcados pela descoberta de doenças terríveis (como Alzheimer). Já Naomi vai parar no Japão para tentar desvendar alguma coisa sobre o sumiço de Aristide.
Publicado em 2014, Consumidos é uma obra impressionante no que consegue prever – sempre com a morbidez e o tom negativo inerente ao grande diretor – o impacto que certas tecnologias tiveram durante este tempo.
Contudo, esta não é uma trama de mistério – o desenrolar do romance não envolve, exatamente, descobrir o que teria acontecido realmente no caso da morte de Célestine Arosteguy. Este é apenas o mote utilizado por David Cronenberg para desfiar o seu rosário dos temas que perpassam toda a sua carreira.
Temos, por exemplo, questões que envolvem os padrões estéticos de pacientes com câncer, a ética do canibalismo, a apotemnofilia (distúrbio mental em que o doente deseja amputar um membro do corpo sadio) e, claro, o sexo a partir de equipamentos tecnológicos.
Soma-se a isso uma trama que envolve um subtexto político e conspiratório com a Coreia do Norte, e temos aqui tudo que poderíamos esperar de uma obra assinada por Cronenberg – mas tudo ao mesmo tempo agora, o que pode ser um problema.
‘Consumidos’: previsões sobre o futuro das tecnologias
Cronenberg escreveu Consumidos ao longo de 7 anos. Publicado em 2014, é uma obra impressionante no que consegue prever – sempre com a morbidez e o tom negativo inerente ao grande diretor – sobre o impacto que certas tecnologias tiveram durante este tempo.
Ele já vislumbra um mundo em que o amor às telas (Nathan e Naomi vivem disputando sobre as capacidades técnicas de seus dispositivos tecnológicos) parece até maior que aos pares românticos. Quando estão juntos, eles fotografam-se nus, muito menos em um aspecto erótico, e mais com uma frieza de quem está fissurado na potencialidade da máquina.
Cronenberg ainda imagina as impressoras 3D tomando algum protagonismo entre os dispositivos favoritos das pessoas, revelando-se capazes de criar réplicas humanas perfeitas que confundem realidade e invenção. Veja: em 2014 esta era uma tecnologia ainda em desenvolvimento, e nem estávamos próximos de pensar em problemas como o deep fake, que promete concretizar um pesadelo em que qualquer um de nós pode aparecer em um vídeo no qual não participamos.
A grande tônica da obra, como o título já entrega, é a paixão pelo consumo, que é o tema central da filosofia de Aristide e Célestine Arosteguy – que, de uma forma bastante contundente, já nos declaram no início do livro que é preferível desejar comprar alguma coisa a não desejar nada. Mas a libido de todos os que estão nesta obra se encontra muito mais nos gadgets (a paixão de Nathan e Naomi) ou nas taras sexuais que beiram o bizarro, fazendo jus ao que esperamos de uma obra do diretor.
Um romance irregular
Contudo, dá para dizer que Consumidos decepciona um pouco pelos seus constantes altos e baixos. Nathan e Naomi viajam o tempo todo (para Paris, para Budapeste, para Toronto, para Tóquio), o que faz com que o romance se quebre em muitas cenas e muitos personagens (que, por vezes, são deixados pelo caminho sem ter muita função clara à trama).
Há momentos realmente empolgantes, que se encontram especialmente nos comentários críticos que o autor faz sobre temas relevantes, como o jornalismo sensacionalista que se alimenta deste mórbido desejo pelo bizarro e pelo depravado. Neste sentido, Naomi e Nathan são ótimos personagens porque eles parecem ter nenhum pudor. Não há qualquer preocupação com ética ou com a importância daquilo que eles fazem, que basicamente se concentra em achar a história mais sensacionalista (e gráfica) que for possível para então documentá-la.
Isso acarreta, em sua vivência, uma fusão com as reportagens (há, inclusive, menção aos recursos usados por Tom Wolfe). Só por causa disso é que aparentemente faz sentido que Nathan se envolva sexualmente com uma mulher que está morrendo e encontra-se “tóxica” pela quantidade de radiação colocada em seu corpo, e que Naomi resolva passar uns bons dias dentro da casa de um possível assassino e canibal.
Outra parte forte envolve a conspiração política que une a Coreia do Norte e o Festival de Cannes – com direito ao líder norte-coreano Kim Jong-un como um personagem de bastidores. Toda a abordagem sobre a paranoia de Célestine Arosteguy (que crê que seu seio esquerdo está tomado por insetos e que isso faria parte de uma longa trama política) é muito sedutora, e nos convida o tempo todo a refletir sobre quais as possibilidades de realidade dentro da loucura.
Ainda assim, Consumidos se torna irregular por conta de seus pontos baixos que, em minha leitura, dizem respeito a uma falta de ritmo e a um excesso de tramas densas e chocantes, quase como se David Cronenberg quisesse socar todos os temas que lhe interessam em um único livro. Acaba dando uma certa sensação de uma paródia de Croneberg, o que nos traz a impressão de que ele desenvolve seu universo muito melhor nos filmes.
CONSUMIDOS | David Cronenberg
Editora: Alfaguara;
Tradução: Cássio de Arantes Leite;
Tamanho: 304 págs.;
Lançamento: Setembro, 2014.
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