Quando um pensamento torpe ganha forma, nem a consciência serve de refúgio. Não basta a “ideia” de atrocidade, se é que dá pra chamar ideia, é o ato e suas consequências. Se ainda fosse algo grave à determinada sociedade e se resumisse a uma ação condenada por ela e ressalvada por outra, se entende uma marca de época, mas nem isso. Absolutamente nada salva Rodion Raskólnikov, protagonista da obra-prima Crime e Castigo, de Fiódor Mikháilovitch Dostoiésvki, publicada em 1866.
O histórico de Rodion não é dos melhores: tornou-se ex-estudante pela falta de dinheiro para continuar os estudos; se esconde atrás de um intelecto que parece ser sua única qualidade; vem de uma família paupérrima; mora em uma casa que mais parece um resto de um quarto de bagunça e mal tem espaço para se deitar; vende as escassas posses na esperança de pagar uma refeição. Em português de rua: ele é um fodido. Poucas relações sociais, um amigo lá dos tempos de estudo, tão encrencado quanto si; e um autoritarismo para com a mãe e a irmã, de quem dependeu financeiramente, mas de quem age como se exigisse em vez de pedir, como se a singela presença fosse um favor. Até aqui não temos novidade, Dostoiévski tem uma galeria de personagens infelizes à própria maneira, do protagonista hesitante de O Duplo aos aliados suspeitos de O Jogador.
Ah, mas esse facínora aqui foi pior que todos. Em uma conversa prosaica com um oficial, em que o assunto era uma senhora com quem Rodion fazia negócios de penhor e aluguel, o protagonista confessa que a mataria sem remorso. O ex-estudante diz: “por um lado é uma velhota tola, absurda, insignificante, má, doente, que não é útil a ninguém e, ao contrário, prejudica a todos, que não sabe pra que vive e amanhã morre de morte natural” (p. 80), e poucas linhas depois, ao ouvir do oficial que a tal velha não merece viver e isso é coisa pra natureza, emenda: “a natureza a gente corrige e direciona, porque senão teria de afundar em superstições” (idem).
Dostoiévski tem uma galeria de personagens infelizes à própria maneira, do protagonista hesitante de O Duplo aos aliados suspeitos de O Jogador.
Não apenas a mente dele é doentia como Raskólnikov mata a senhora. E a irmã dela também. Não é dar spoiler do enredo, pois isso acontece bem cedo. Há mais eventos na história, desde um enterro no qual Raskólnikov se envolve com a família enlutada, inclusive colabora com dinheiro que nem ele tem; os contatos escassos com talvez o único amigo que restou, esperançoso com uma ideia para um negócio e tem de aguentar a negatividade do protagonista; uma visita da mãe e da irmã de Rodion por conta de um possível casamento desta, ao qual ele se põe contra e proporciona um diálogo entre iguais no livro, pois o então candidato a cunhado se revela tão arrogante quanto Raskólnikov. E a consciência dele lá, soterrada como se dissesse: você é um assassino.
A forma como isso permanece assombra mais do que o fato, pois não há demonstração de arrependimento. Raskólnikov formula uma hipótese monstruosa de que a história absolve pessoas “excepcionais”, como se elas pudessem tirar uma vida humana sem sofrerem punições por isso. Napoleão Bonaparte está entre os exemplos morais do protagonista, que falta apenas se proclamar tão grandioso quanto o imperador, sem sequer ter feito algo “útil” a qualquer pessoa. É como se ele tivesse ciência da própria atrocidade, a comete, não apenas não se envergonha como se enaltece, afinal, ele é o útil mesmo que não pense no depois, mesmo que justifique sua “ação” com sangue alheio. É uma narrativa carregadíssima em que Dostoiévski não se cansa de jogar com todas as questões possíveis de consciência, de uma tensão psicológica sufocante que faz questão de jogar na cara de quem lê, que talvez não esteja distante do protagonista – quando não por conhecer alguém tão atroz quanto, por o ser de outra forma, apenas sem cruzar a barreira entre ação e ideia.
CRIME E CASTIGO | Fiódor Dostoiévski
Editora: Editora 34;
Tradução: Paulo Bezerra;
Tamanho: 592 págs.;
Lançamento: Janeiro, 2016 (7ª edição).