Imagine a situação descrita abaixo: você é fruto de uma família pobre. Após o suicídio de seu pai, sua mãe tem que trabalhar o tempo todo para poder o sustentar, e confia sua criação e a de seus irmãos a uma jovem imigrante, a única pessoa com quem você tem algum vínculo. Mas logo sua mãe se casa novamente, e dispensa sua “mãe do coração”, e você não se dá muito bem com seu padrasto. Você nunca chega a desenvolver realmente a capacidade de gerar afeto e, inconscientemente, acredita que se vincular a alguém significa ser abandonado. Por consequência, você é intempestivo e um tanto agressivo com todos em sua volta.
Contrariando todas as probabilidades, você acaba se formando em Medicina e, mesmo com gênio difícil (o que o leva a ser demitido de vários hospitais), você se torna um grande profissional em uma área absolutamente difícil: o tratamento da leucemia infantil. Diferente de tantos outros médicos, você é o único que tem coragem o suficiente para fazer testes inovadores no tratamento da doença, submetendo seus pacientes a procedimentos tão agressivos e arriscados que poderão, talvez, matar as crianças ou salvar suas vidas (o que de fato acaba acontecendo). Como você adquiriu capacidades tão nobres? É claro: todas as desvantagens que você tinha – o abandono, a falta de afeto, a pobreza – acabam se tornando uma grande vantagem para que você possa fazer algo grandioso e deixar sua marca no mundo (não é isso o que todos querem, afinal?).
A história acima – que aos desavisados talvez pudesse parecer a trama de um melodrama – é a do médico Emil “Jay” Freireich, e é apenas uma das várias contadas na mais recente obra do jornalista Malcolm Gladwell, Davi e Golias (Editora Sextante, 2014). O autor – que é colunista da revista The New Yorker desde 1996 – é conhecido mundialmente pelos seus livros, todos compostos por grandes reportagens jornalísticas nas quais se propõe a investigar temas específicos, instigantes e algo curiosos: em Ponto da Virada (2009), pesquisa a dinâmica da criação de “febres” e modas e o que faz algo virar um sucesso; em Blink (2005), esmiuça os mecanismos da intuição; em O que se passa na cabeça dos cachorros (2012), apura o processo de construção de certas marcas e desvenda alguns mistérios (por exemplo: como as redatoras publicitárias que trabalhavam para a L’Oréal conseguiram convencer as mulheres de que elas deveriam pintar os cabelos?).
A relação entre jornalismo e autoajuda chega ao ápice em Davi e Golias, cuja a premissa pode ser considerada ao mesmo tempo fascinante e piegas.
Em comum, portanto, a obra de Gladwell possui uma marca intrigante, que é se situar entre o jornalismo (como repórter, Malcolm é estupendo e revela um trabalho incansável de apuração e pesquisa em cada um de seus textos) e autoajuda (pois, como a descrição dos livros talvez sugira, são todas obras que revelam exemplos edificantes, de superação, e que, de certa forma, inspiram o leitor). Vale destacar, a título de curiosidade, que a própria editora Sextante possui um catálogo vasto de obras de autoajuda e espiritualidade, e que Gladwell já foi acusado de ser simplista por seus críticos (leia matéria aqui).
Esta relação entre jornalismo e autoajuda chega ao ápice em Davi e Golias, na qual a premissa pode ser considerada ao mesmo tempo fascinante e piegas: todas as reportagens do livro buscam investigar casos em que, tal qual Davi na história bíblica, indivíduos utilizaram suas desvantagens como “armas” para enfrentar forças muito maiores do que eles – seja o disléxico que não conseguia ler e acaba por virar um grande empresário de sucesso ao aprimorar sua capacidade como ouvinte, seja o treinador que reorganiza um time fraco de basquete feminino e o torna campeão ao explorar estratégias menos óbvias.
Como nas outras obras do autor, Davi e Golias revela sua grande qualidade na investigação de pautas muito bem sacadas. Dentre os capítulos que mais se destacam, está aquele em que o autor relata as estratégias utilizadas pelos negros liderados por Martin Luther King nas batalhas raciais pelos direitos civis nos Estados Unidos nos anos 1960. A história, que é fascinante, revela não só um trabalho jornalístico, mas uma aula de leitura de imagens (ao analisar como a má interpretação de uma foto publicada em um jornal se tornou uma tática crucial ao “ponto da virada” para o sucesso do movimento).
Do mesmo modo, o livro ganha força no capítulo que Gladwell direciona o debate à educação e faz uma vasta investigação sobre a teoria do “peixe grande na lagoa pequena”, baseando-se na seguinte interrogação: quais as vantagens e desvantagens de um estudante ao estudar em uma grande universidade? Vale mais a pena lutar com todas as forças para estar numa universidade de elite, ou há maior probabilidade de consolidar uma carreira de sucesso aqueles que vão para universidades menores (ou seja, acabam preferindo ser um peixe grande em uma lagoa pequena a um peixe pequeno em uma lagoa grande)?
O trabalho para escrutinar estas questões – baseado em uma vasta quantidade de entrevistas e a consulta a muitas pesquisas que analisam quantitativamente esta questão – é digno de nota, e nos evidencia que esta é, afinal, a obra de um grande repórter e não de um autor de autoajuda. O que nos remete novamente à questão inicial: será que o rótulo do gênero “autoajuda” já não está suficientemente gasto e acaba por vezes nos afastando de obras de grande qualidade? Inspirar, edificar – assim como incomodar, desestabilizar – não deveriam ser vocações natas do jornalismo e da literatura? Tudo não é autoajuda, em alguma medida? Eis, talvez, um tema a ser explorado por Gladwell, este curioso incorrigível, em suas próximas obras.
DAVI E GOLIAS | Malcolm Gladwell
Editora: Sextante;
Tradução: Ivo Korytowski;
Tamanho: 288 págs.;
Lançamento: Fevereiro, 2014.
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