Em uma conversa banal, Edgar Wilson recebe a ordem do patrão Milo para fazer uma cobrança, coisa que não é de seu feitio. O patrão olha a lista dos funcionários e de suas atividades, Edgar adverte que tal pessoa não tem muito jeito com a sua função – alguém a precisa executar enquanto ele vai fazer o que o chefe lhe pediu -, mas vai fulano mesmo. É só por um tempinho. O abatedouro não tinha uma carga grande naquele dia.
De Gados e Homens, romance de Ana Paula Maia, publicado em 2013, se concentra nesse personagem. Edgar Wilson volta para o trabalho no abatedouro de gado após cumprir o pedido, e a narração conta sua rotina enquanto responsável por abater os bois de forma eficiente, sem fazer com que o animal sofra. São gestos calculados: ele encara o boi, faz seus “rituais”, dá um golpe e pronto, o animal está morto e pronto para ter as vísceras dissecadas e separadas entre o que pode ser aproveitado para futuramente ser transformado em alimento e o que será descartado.
Também conhecemos os demais membros da empresa nas cenas em que a narrativa, contada na íntegra em terceira pessoa onisciente, muda de foco. Bronco Gil e seus tratos condizentes ao nome; o novato Santiago e suas práticas um pouco estranhas perto do comportamento padrão dos colegas mais velhos; o velho Emetério e suas razões para sentir gratidão; Helmuth e Burunga. Suas personalidades são descritas em combinações de migalhas do passado com suas ações durante o trabalho, onde a exigência de força física e concentração é o idioma desse ambiente.
Nos diálogos curtos e diretos se revelam problemas enfrentados pelo abatedouro. Certo dia, um engano termina de forma trágica tanto por sua causa quanto seu fim, pois o seu responsável – na verdade assim julgado pelos outros, mesmo sem o uso dessa palavra – jamais imaginaria que alguém enfiaria a cabeça justo naquele barril, mas o fato predomina sobre a desculpa; a despeito disso, a vida ali segue e é quase como se tivessem trocado uma engrenagem qualquer ou reabastecido o óleo de uma máquina.
Suas personalidades são descritas em combinações de migalhas do passado com suas ações durante o trabalho, onde a exigência de força física e concentração é o idioma desse ambiente.
Sucessivos dias e noites, e há uma suspeita de que há menos bois do que deveria, e Edgar Wilson conversa com os demais sobre isso, com alguma dose de descrença e como podem fazer alguma coisa. E de preferência, antes de Milo voltar, afinal, é o emprego do capataz encarregado por fazer às vezes de patrão que está em jogo, e também a sobrevivência desse grupo tão particular ameaçada por algo difícil de acreditar.
De Gados e Homens é uma ficção forte. Não há lacunas propositais nem explicações longas, apenas o cotidiano do abatedouro e a ética própria de seus homens, tão própria como a economia de suas palavras. É como em um diálogo onde Milo sabe de uma ação vil cometida por um de seus empregados e não a revida mesmo a reprovando, pois está ciente dos atos de ambos os lados; as camadas mais ambíguas e profundas se revelam nos gestos brutos, afinal, “a vida no campo o tornou parecido com os ruminantes, e, sendo ele um homem de gado, consegue estabelecer perfeito equilíbrio entre os temores dos irracionais e o devaneio abominável de quem os domina”.
DE GADOS E HOMENS | Ana Paula Maia
Editora: Record;
Tamanho: 128 págs.;
Lançamento: Outubro, 2013.
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