Ouve-se muito sobre a xenofobia circulante nos países europeus. Mas ouvir sobre não é saber – e, mais ainda, não é conhecer a história sob o ponto de vista dos próprios imigrantes. Autor sensação na Flip de 2025, o marfinense Armand Patrick Gbaka-Brédé, mais conhecido como GauZ, apresenta no bem-humorado em De Pé, Tá Pago (editora Ercolano, 2025, tradução de Diogo Cardoso) a vivência invisível dos africanos que migram para Paris.
Ao chegarem na capital da França, cabe a boa parte dos homens o posto pouco nobre de se tornarem “homens de preto”, os incontáveis seguranças que permanecem nas lojas protegendo o patrimônio de milionários, donos de lojas como Sephora. Ali, eles desempenham uma função cujo principal desafio é ficar de pé, vigilante, driblando o tédio. Daí surge a expressão “de pé, tá pago”: o trabalho apenas exige “que o funcionário permaneça em pé para ganhar uma ninharia”. O principal desafio é ficar longos períodos sem sentar.
A sacada divertida do livro de GauZ é notar que esses incontáveis sujeitos estão ali enxergando muita coisa e tirando suas próprias percepções sobre Paris, sobre a Europa e sobre as misérias do sistema capitalista. Carregando um tom de uma visão comunitária, o escritor vai nos entregando personagens perspicazes e que têm total clareza de que estão sendo explorados como mão de obra barata.
Em certo momento, um deles diz: “a subcontratação foi imposta de maneira rápida e massiva como forma de continuar ganhando dinheiro enquanto outros trabalham. Capitalismo puro. Coisas simples de executar, pode deixar que os negros dão conta. Além disso, quando há muita necessidade de mão de obra, eles podem facilmente chamar seus ‘irmãos’. Pior que isso nem é racismo, nem é questão de cor. É só questão de grana, mesmo, amigão”.
Mas é óbvio que, sim, esse subtrabalho carrega uma boa dose de estereótipo racista. Como nos esclarece o narrador, “homens negros são corpulentos, homens negros são altos, homens negros são fortes, homens negros são respeitosos, homens negros são assustadores”.
‘De Pé, Tá Pago’: a imigração pelo olhar dos imigrantes

GauZ organiza a estrutura do livro em capítulos que giram em dois grandes eixos: uma história das migrações geracionais da África para a Europa (situada em três tempos: a “Idade de Bronze”, de “Ouro” e de “Chumbo”) e capítulos mais leves, que trazem aforismos, quase todos bem engraçados, em que os seguranças tecem suas considerações sobre as lojas e sobre os clientes que circulam nela.
É uma sacada inteligente, que equilibra De Pé, Tá Pago tanto como um livro denso (que nos revela as condições que levaram essas pessoas a saírem de seus países, realizando ofícios precários e que foram sendo passados dos pais para os filhos) quanto como uma obra de humor.
De Pé, Tá Pago é, acima de tudo, uma obra crítica sobre os efeitos devastadores do capitalismo na vida de todos, configurando como um sistema totalitário do qual ninguém escapa.
A leveza parece estratégica, mas também consolida um ponto de vista sobre a vida. Em nenhum momento GauZ nos entrega personagens tristes e trágicos, e os africanos (vindos de diversos países, cada um com suas especificidades, quebrando a homogeneidade típica em muitas narrativas) se divertem, um pouco que seja, mesmo quando estão trabalhando.
Mas que fique claro aqui: nada disso significa conformismo, e De Pé, Tá Pago é, acima de tudo, uma obra crítica sobre os efeitos devastadores do capitalismo na vida de todos, configurando como um sistema totalitário do qual ninguém escapa. Uma das ideias vigentes no livro é o questionamento sobre a necessidade de tanta vigilância – afinal, todos aqueles homens grandes e corpulentos estão ali dispostos para proteger um patrimônio milionário, e que, caso algum item for roubado, seria por pessoas pobres como eles e certamente não afetaria as grandes fortunas.
Ao fim de De Pé, Tá Pago, um epílogo nos informa: essa obra só pode nascer pelo fato de que o próprio escritor, ele mesmo um imigrante, teve que se virar na França para sobreviver. Dentre as atividades desempenhadas (as quais divide entre “fazer papel de bobo (para conseguir grana)”, “fazer arte” e “ativismo”), está, por certo, o trabalho de segurança de uma grife de perfumes.
A vivência real – na qual, segundo GauZ, pode testemunhar in loco a avidez quase religiosa dos consumidores pelas marcas – é fundamental para tornar esta pequena grande obra um tratado sobre a falência moral e social da contemporaneidade em que o dinheiro é o centro de tudo.
DE PÉ, TÁ PAGO | GauZ
Editora: Ercolano;
Tradução: Diogo Cardoso;
Tamanho: 176 págs.;
Lançamento: Julho, 2025.
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