O livro Departamento de Especulação, de Jenny Offill, propõe-se a tratar de um dos temas mais insolúveis de todos os tempos: o enigma sobre o que faz um casamento funcionar. Neste incensado pequeno romance, isto é abordado de maneira que transita, de maneira difícil de explicar, entre o humor e a melancolia.
O crítico John Self, no The Guardian, parece ter definido bem: “um livro tão triste não deveria ser tão divertido de ler”. Ou deveria? A resposta dada por Jenny Offill é sempre trilhar o caminho da incógnita, com uma prosa que se situa entre o poético e cômico. Casamentos são (quase) sempre mistérios que nenhuma das envolvidas consegue um dia de fato entender, ainda que seja mais fácil se iludir sobre o contrário. Mas esta fatalidade não significa que não se possa olhar a esta charada amorosa com alguma presença de espírito.
A riqueza de Departamento de Especulação está menos no conteúdo e mais na forma.
Não obstante, é justo lembrar que Departamento de Especulação não se propõe a desvendar a “verdade” sobre um relacionamento. Muito pelo contrário: o livro assumidamente aborda um casamento apenas por um dos lados. A narradora é uma escritora, que se intitula apenas como Esposa, e que conta, por meio de cartas aforísticas (que parecem, em certa medida, postagens curtas em redes sociais), a sua trajetória após contrair núpcias com o Marido, um músico.
Ela não planejava se casar, mas aconteceu: ela se apaixonou e resolveu encarar o desafio. Uns anos depois, nasce a Filha. A vida, portanto, corre rumos imprevistos, e Departamento de Especulação se torna um testemunho bem revelador sobre o que passa na mente de uma mulher que, aos poucos, se vê afastar de seus objetivos originais (ser uma artista) e confundir-se com as funções domésticas de mãe e esposa. Da escritora importante que ela almejava ser, sobrou apenas uma professora de escrita criativa que produz livros ruins sob encomenda feita por pessoas ricas e vaidosas.
Obviamente, é mais “natural” às mulheres que esqueçam de seus sonhos – ainda mais quando eles envolvem coisas “inúteis” como a arte. Escreve a Esposa: “as mulheres quase nunca se tornam monstros da arte porque os monstros da arte só se preocupam com a arte, nunca com as coisas mundanas. Nabokov nem dobrou seu próprio guarda-chuva. Vera lambeu seus selos para ele.”
A chegada da desilusão
Offill parece ter um talento especial na descrição das personagens a partir não de características e adjetivos, mas por cenas. A Esposa define o Marido de maneira peculiar: “Ele é notoriamente gentil, meu marido. Ele é de Ohio. Isso significa que ele nunca se esquece de agradecer ao motorista do ônibus ou empurra na frente na esteira de bagagens”.
Não há grandes tragédias aqui: é um casamento normal, sem grandes idealizações, com um cara legal. Mas mesmo assim, a maionese começa a desandar e a infidelidade – o que, na nossa educação sentimental, é ainda a causa hors concours dos divórcios – se prenuncia no horizonte. O marido gente boa se apaixona por outra, quebrando a estabilidade superficial deste trio.
A partir daí, acompanhamos a descida ao inferno de uma mulher traída. Neste momento, Departamento de Especulação, tal como uma esfinge, nos coloca em frente a outro enigma: como se segue adiante quando o cônjuge quebrou o contrato tácito do casal e direcionou seu desejo para outrem?
Mas que ninguém se engane: este não é um livro que enfrenta questões filosóficas infindáveis do tipo “o que leva alguém a trair”. A riqueza de Departamento de Especulação está menos no conteúdo e mais na forma. A obra nos seduz pelo estilo paradoxalmente leve e contundente com que Jenny Offill nos presenteia.
São centenas de pequenos recortes do cotidiano desse mulher – tanto no que passa em sua vida externa quanto no que a aflige em pensamentos – que operam como microcrônicas divertidas.
Um exemplo: “Como ela se tornou uma daquelas pessoas que usam calças de ioga o dia todo? Ela costumava tirar sarro dessas pessoas. Com seus mapas da felicidade e seus diários de gratidão e suas sacolas feitas de pneus reciclados. Mas agora parece possível que a verdade sobre envelhecer seja que há cada vez menos coisas para se zombar até que finalmente não haja nada que você tenha certeza de que nunca será”.
As pérolas envolvem insights que, de alguma forma, já passaram na mente de todos nós, ainda que nem sempre tenhamos sido traduzido estes pensamentos em palavras (infelizmente, nem todos podemos ser escritoras de talento). Quando o Marido pergunta à Esposa sobre qual o momento mais feliz de sua vida, ela descreve uma cena de profunda solidão, o que o entristece. Surge, nas palavras de Jenny Offill, uma pequena verdade absoluta: “se a pergunta for feita por alguém que você ama, é justo presumir que essa pessoa espera figurar nessa lembrança que evocou”.
Uma pequeneza tão ridícula quanto real, tal como a maioria dos casamentos (ou seriam todos?). E se há em Departamento de Especulação, por fim, uma resposta para o enigma inicial (o que faz um casamento funcionar), talvez ela esteja neste trecho: “minha agente tem uma teoria. Ela diz que todo casamento é improvisado. Mesmo os que parecem razoáveis por fora são presos por dentro com chiclete, arame e barbante.”
DEPARTAMENTO DE ESPECULAÇÃO | Jenny Offill
Editora: Todavia;
Tradução: Carol Bensimon;
Tamanho: 136 págs.;
Lançamento: Fevereiro, 2023.
ESCOTILHA PRECISA DE AJUDA
Que tal apoiar a Escotilha? Assine nosso financiamento coletivo. Você pode contribuir a partir de R$ 15,00 mensais. Se preferir, pode enviar uma contribuição avulsa por PIX. A chave é pix@escotilha.com.br. Toda contribuição, grande ou pequena, potencializa e ajuda a manter nosso jornalismo.