Há uma espécie de segredo que perpassa as tragédias. Quem passa por uma delas está fatalmente transformado para sempre, de uma maneira que não é possível compartilhar (ao menos não completamente) com os outros. Dia Um (Companhia das Letras, 2022),do escritor e jornalista Thiago Camelo, é um relato sensível e duro sobre um sujeito a partir do momento da ocorrência de uma tragédia fundante: o suicídio do irmão mais velho, após se atirar do sétimo andar em um apart-hotel em Copacabana.
O “dia um” parece autoexplicativo. Há uma nova forma de vida que precisa ser aprendida pelo narrador a partir do exato momento em que recebe a notícia da morte do irmão. O acontecimento traz o contato com um tipo de ser onipresente, que jamais desaparecerá de cena: “o suicídio é uma espécie de deus das culpas. O suicídio é uma espécie de deus das saudades”.
Com uma crueza que é apenas possível a quem passou por um fato desse tipo, há um resgate dos pensamentos que se intrometem bruscamente na mente da pessoa acometida pelo trauma. A estranheza da situação. O resgate imediato das lembranças do passado. A percepção algo objetiva sobre as reações dos familiares: o que não chora, o que não parece se chocar o suficiente, o que se mantém de pé e resolve coisas práticas.
A convivência com a ideia incômoda do suicídio do irmão faz com que o narrador busque prestar contas com a sua própria história familiar.
De forma inventiva, Camelo constrói a história usando o recurso da segunda pessoa, narrando os episódios – que, em seu cerne central, aconteceram com ele: seu irmão mais velho se matou, aos 41 anos – por meio de um “você”. Quase como se buscasse se afastar da narrativa para poder contá-la: “você se lembra bem da voz dele, mas já está esquecendo o som do corpo dele”. Talvez o ato de “terceirizar-se” seja o único recurso possível para conseguir tocar o intocável.
Enquanto uma nova vida (melhor ou pior, pouco interessa) se inicia no chamado “dia um”, o fato é que ele serve neste romance como mote para o resgate da história de uma pessoa – que é menos o irmão, e mais o próprio sujeito, que se interroga sobre como sua personalidade foi se formando por meio de uma vivência atravessada por tantas condições específicas: essa família, essa realidade econômica, esse bairro nessa cidade, que em certo momento foi visto como o mundo todo, ou simplesmente “A Rua”.
O que de fato ocorria ali? Era uma família feliz? Havia uma convivência saudável em meio a tantas amizades de bairro, com meninos sendo criados nos anos 1980 para se tornarem que tipo de homem? Tantas questões, invisíveis à época da ocorrência dos fatos, começam a ser retomadas de maneira muito sensível por Thiago Camelo, que tece a obra de uma maneira poética, ainda que em sentidos não convencionais.
A história de uma família

A convivência com a ideia incômoda do suicídio do irmão (uma pergunta para a qual jamais haverá respostas) faz com que o narrador busque prestar contas com a sua história familiar, desdobrada pelos próprios sofrimentos e dificuldades. Se o irmão mais velho parecia sempre a ponta mais frágil, em torno da qual girava a família, há também os outros personagens: o irmão do meio que “deu certo”, o pai que tem a solidez de uma rocha, a mãe que se perde para cuidar do filho doente.
É neste “depois” que irá se desenrolar, a partir de uma narrativa elástica que passeia por diferentes momentos temporais, uma investigação sobre a relação entre os três irmãos, o que nos leva ao contato com um romance capaz de tocar em lugares escondidos dentro do leitor. Há muita beleza na história de um homem que, mesmo convivendo com uma dor insuperável, olha para si e olha para frente, reconhecendo, por meio justamente do sofrimento, um mundo possível para se viver.
Há uma espécie de comunidade que vai se formando e conectando todos os sujeitos que também carregam sofrimentos indizíveis, tal como expressa Thiago Camelo em Dia Um: “por mais manifesta, a dor é sempre um segredo”. Ao compartilhar o seu segredo, com as ferramentas que têm, o autor não apenas parece buscar assentar a própria história, mas também estabelece um lugar e uma “turma” para quem também carrega em si dores como a dele.
DIA UM | Thiago Camelo
Editora: Companhia das Letras;
Tamanho: 202 págs.;
Lançamento: Novembro, 2022.
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