Às vezes a realidade tem disso de ser meio insuportável, então a gente precisa recorrer a algo que nos tire dali. Há várias saídas possíveis e questionáveis como religião, álcool, remédios, comida, games, maratonas de séries, literatura, etc. O problema é que alguns desses subterfúgios não funcionam como uma saída de emergência e, veja só que sacanagem, ainda acabam te jogando ali no centro daquilo que você estava tentado escapar. Livros como o da Virgínia Woolf e do Sartre, por exemplo, são maravilhosos, nos abrem novos horizontes de reflexão, etc, mas eles também são danados, pois colocam uma nuvem negra de desenho animado na nossa cabeça, tornando meio difícil atravessar uma terça-feira nublada. Eleanor & Park foi uma tentativa de ler algo mais leve e fazer a tal nuvem dissipar, mas eis que falhei miseravelmente, pois o livro, que é todo fofo, também reserva uma dose cavalar de tristeza e desilusão.
Park é um nerd, descendente de coreanos, fissurado por rock e histórias em quadrinhos. Eleanor é uma garota ruiva que usa roupas esquisitas e vive numa família completamente disfuncional. Ela acabou de se mudar e terá que enfrentar o primeiro dia de aula numa escola nova. Se você já assistiu a alguns filmes indies, consegue perceber de antemão que vem pela frente uma história de amor cheia de melancolia e referências pop. E é isso aí mesmo, o livro brinca com os clichês do gênero, mas te entrega tudo aquilo que se espera desse tipo de enredo: o atrito inicial, a aproximação, a felicidade plena e os conflitos. O que faz com que Eleanor & Park não caia na vala comum das publicações direcionadas a adolescentes é o fato de que é praticamente impossível não se apegar a esses personagens.
Talvez um marmanjo de 30 e poucos anos como eu fique meio constrangido de andar por aí com um livro de capa cor-de-rosa, com desenho fofinho e, pior, com uma frase elogiosa do John Green ali no topo. Mas vai por mim, toda essa vergonha desaparece rapidinho quando você lê a história de um garoto se aproximando de uma garota através das músicas do Morrissey e das histórias do Alan Moore. E quando os dois se sentam numa escada para ler Watchmen e esquecem, por alguns minutos, de tudo o que está ao redor, você, leitor trintão, também já não está nem aí para quem está por perto rindo da sua cara.
Utilizando uma linguagem cativante e envolvente, a escritora Rainbow Rowell nos conduz por um belo enredo que consegue mesclar muito bem o humor e o drama.
A propósito, aqui está um dos grandes méritos do livro: as referências não são gratuitas, do tipo que servem apenas de isca para atrair aqueles nerdões que se orgulham de identificá-las aleatoriamente. Se os dois jovens leem X-Men e ouvem Dead Kennedys no ônibus da escola, significa que estes elementos estão amplamente relacionados aos problemas que eles estão passando naquele momento, tanto a questão de não serem aceitos socialmente, quanto a vontade de se rebelar contra o sistema que os rodeia.
O livro ainda fala de sexo, violência contra a mulher e abuso infantil, tudo isso de maneira delicada, sem trechos muito explícitos, mas também sem fugir das complexidades que envolvem estas questões. Trata-se da visão de dois adolescentes a respeito do mundo meio quebrado que os cerca, portanto é natural que tudo o que eles enxerguem passe por um filtro de ingenuidade e inexperiência.
Utilizando uma linguagem cativante e envolvente, a escritora Rainbow Rowell nos conduz por um belo enredo que consegue mesclar muito bem o humor e o drama. Esse foi o meu primeiro contato com a tal da “Literatura Young Adults”, direcionada principalmente para o pessoal que está deixando a adolescência para começar a encarar a vida adulta. Não vou negar que tive muito preconceito com esse tipo de livro (as capas não ajudam muito, vai), mas Eleanor & Park me fez ver que o gênero não é necessariamente uma limitação, pois o que interessa de verdade é a vontade de contar uma boa história.
ELEANOR & PARK | Rainbow Rowell
Editora: Seguinte;
Tradução: Lígia Azevedo;
Tamanho: 360 págs.;
Lançamento: Junho, 2020.
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