Mamãe morreu hoje, nos conta o personagem. Ou ontem, ele não sabe, apenas recebeu um telegrama do asilo onde ela morava o contando do fato e do enterro no dia seguinte, mas ele diz “isso não esclarece nada”. Desconfio que com essa frase do parágrafo inicial, Albert Camus entregou, sem querer, um dos motes de sua obra O Estrangeiro.
A história é narrada em primeira pessoa por Meursault, cujos atos, durante e após o enterro da mãe, acompanhamos. Em diálogo com uma pessoa do asilo onde ela morava, Meursault ouve que não precisa pedir desculpas, afinal seu salário é muito baixo para a sustentar; mas os pensamentos do protagonista apontam outra direção, reforçada por uma pergunta sobre a falecida para a qual ele responde “não sei”.
Encerrada a cerimônia fúnebre, Meursault volta para casa e não tarda a retomar sua vida. Um vizinho o chama e começam a dialogar sobre algumas particularidades; não tarda para que ele e Meursault tenham algum vínculo e o protagonista seja convidado para uma saída em grupo; teria a companhia de uma mulher e mais gente com quem conversar, e sem dizer muito ele aceita.
Igualmente sem dizer muito, Meursault se envolve em uma confusão grave. Nem era tanto com ele, talvez pudesse ser considerado uma vítima ou alguém coagido a testemunhar em favor de um dos envolvidos, apenas talvez – se não fosse um detalhe: “o gatilho cedeu, toquei o ventre polido da coronha e foi aí, no barulho ao mesmo tempo seco e ensurdecedor, que tudo começou”.
Meursault assassina um homem e é preso, mas isso é apenas a entrada. Privado de sua liberdade, nada faz para a ter de volta e tampouco demonstra arrependimento, e mesmo a consciência de seu crime incomoda. Ele compartilha com a gente sua ótica de quem se vê no banco do réus e ainda acha isso interessante; descreve a sociedade de forma corrosiva quase como se estivesse ausente dela, como se cada detalhe fosse uma bala guardada na arma que usou.
Ele compartilha com a gente sua ótica de quem se vê no banco do réus e ainda acha isso interessante.
Me arrisco a dizer que aqui está a real história escrita por Albert Camus: a ambígua posição do protagonista d’ O Estrangeiro. A narrativa se (des)constrói pelas ambiguidades e nos força um posicionamento – ironicamente, o do personagem fica nas sombras. Nada contra personagens ambíguos, vide o Capitão Nemo de Júlio Verne, cujos demônios cabem em uma declaração: “Rompi com a sociedade por razões que somente eu tenho o direto de julgar”; ou então o protagonista sacana e nada confiável de O Cemitério de Praga de Umberto Eco, para quem o problema é ser pego negociando com facções opostas (enquanto ele claramente prejudica ambas na surdina); mas do protagonista desta obra em questão não temos nem isso.
É difícil ‘confiar’, se a palavra cabe, em uma visão terrivelmente parcial e sem afeto ou ódio por pessoa alguma; torcer contra um culpado que parece indiferente a tudo, sendo que passa um romance inteiro e continuamos sabendo pouco de sua natureza.
O ESTRANGEIRO | Albert Camus
Editora: Record;
Tradução: Valerie Rumjanek;
Tamanho: 128 págs.;
Lançamento: Junho, 1979.
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