O jornalista e pesquisador Bruno Paes Manso é, atualmente, um dos grandes especialistas nas diferentes facetas da violência brasileira. Autor de A Guerra: a ascensão do PCC e o mundo do crime no Brasil (com Camila Nunes Dias), que trata da construção do PCC, em São Paulo, e de A República de Milícias, que aborda a constituição deste tipo de criminalidade no Rio de Janeiro, Manso estuda e cobre, desde o começo de sua carreira profissional, de que forma os crimes e a violência têm se desdobrado no país nas últimas décadas.
Na virada dos anos 2000, contrariando todas as previsões, o jornalista começou a se deparar com um fenômeno surpreendente: a diminuição nos casos de assassinatos em São Paulo. Passou então a tentar entender as causas, que são abordadas em seu mais novo livro, A Fé e o Fuzil: Crime e Religião no Brasil do Século XXI (Todavia, 2023).
No livro reportagem, Bruno Paes Manso mapeia especialmente como a fé evangélica se atravessou no caminho dos criminosos, sobretudo os matadores (cuja função “justiceira” vigorou até pelo início dos anos 2000), fazendo com que pessoas que foram capazes de cometer inúmeros assassinatos passassem por experiências de metanoia – termo que, no discurso teológico, aponta ao ato da conversão espiritual de alguém, o que leva a uma mudança de mindset em que se começa a superar os erros passados e, supostamente, a corrigir a rota.
O jornalista constata, então, que houve uma forte interferência da ascensão das igrejas evangélicas nesse cenário, levando com que bandidos se arrependessem e procurassem uma nova vida – processo que, aos olhos de pessoas externas a esse contexto, parecia algo inconcebível. Como pode alguém que foi capaz de atos tão torpes e desumanos converter-se a uma causa divina?
Para responder a essa questão, Paes Manso tece uma densa análise sobre como o aumento dos templos evangélicos, o abandono do Estado, a migração em massa de nordestinos para o sudeste e a crise econômica e política fizeram com que bairros desfavorecidos, repletos de pessoas pretas e pobres, encontrassem acolhimento em uma instituição que prometia muito mais do que salvação espiritual.
Por meio de suas fontes cultivadas por décadas, Paes Manso acaba conseguindo uma série de depoimentos impactantes de sujeitos ligados ao crime organizado que se converteram e acharam uma forma de nascer de novo. Como resultado deste esforço, tem-se um retrato da religiosidade e da criminalidade brasileira que vai muito além do estereótipo, buscando também entender por que os evangélicos se tornaram tão numerosos no país.
Um retrato do abandono do Estado às classes populares
Por meio de suas fontes cultivadas por décadas, Bruno Paes Manso acaba conseguindo uma série de depoimentos impactantes de sujeitos ligados ao crime organizado que se converteram e acharam uma forma de nascer de novo.
A verdade é que A Fé e o Fuzil faz um recorte que vai muito além da questão da religião e do crime. O que vai se entendendo, ao longo dos capítulos, é que a crise instituída no Brasil – configurada, especialmente, pelo abandono do Estado, em todas as suas instâncias, das camadas mais pobres – abriu espaço para que as duas fés (a pentecostal e a do “fuzil”) se tornassem um caminho possível para que milhares de brasileiros encontrassem o que parecia ser a única maneira possível de vencer na vida.
As instituições religiosas e as facções criminosas, afirma Bruno Paes Manso, constituíram-se como uma espécie de governo que vem de baixo para cima. Até os anos 1990 e 2000, vigoraram os justiceiros que legitimavam a ideia da “limpa social” ao matar pessoas que, supostamente, tinham envolvimento com crimes (por conta disso, eram inclusive louvados pela mídia). Isso só começa a mudar com a ascensão do PCC, que estabeleceu novas regras, e com a onda pentecostal.
Escreve o autor: “enquanto os religiosos apostavam na vida, a solução dos matadores era a morte. Os primeiros exorcizavam demônios e reformatavam as mentes pecadoras. Os segundos agiam para limpar as ameaças da face da Terra, identificadas na figura dos bandidos. A fórmula parecia mágica: eliminar fisicamente o perigo do mapa tornava a cidade mais segura e, ao mesmo tempo, servia como lição de que era necessário respeitar as regras”.
Enquanto a Igreja Católica se desenvolveu no Brasil pelos caminhos progressistas da teologia da libertação, que enfatiza na busca dos direitos dos oprimidos, o pentecostalismo se sustenta sobretudo numa batalha espiritual contra os fiéis que ainda não se converteram e na chamada teologia da prosperidade – que promulga ser possível colher os frutos da salvação ainda em vida, sem esperar que a recompensa venha no paraíso.
Segundo o jornalista, isso desenvolve a imagem de Jesus másculo, justiceiro e armado – cuja ideia é muito usada, por exemplo, pelos bolsonaristas e conservadores de modo geral – que toma espaço do Jesus humilde e posicionado do lado dos mais pobres. Dentro dessa ideologia, a busca irrestrita pelo dinheiro como o único modo de ser alguém se torna legítima – seja por meio da criminalidade, seja pelos modos mais “limpos” e mediados pela fé.
Tudo isso abre espaço a uma visão mais cínica da realidade, neoliberal, em que cada um está por si e precisa fazer tudo que pode para louvar o “deus dinheiro”. Nesse sentido, o cruzamento entre a guerra pelo capital dos que se converteram ao crime e a guerra espiritual dos evangélicos parece culminar em um casamento perfeito, e se desdobra em problemas que acometem os brasileiros até que alguma solução (aparentemente, ainda não descoberta) venha à tona.
Assim como as outras obras produzidas por Bruno Paes Manso, A Fé e o Fuzil: Crime e Religião no Brasil do Século XXI é um estudo de fôlego que une a capacidade analítica de um pesquisador maduro com a coragem e o domínio técnico de um grande repórter. É um livro que merece ser lido e discutido em todas as instâncias do Brasil.
A FÉ E O FUZIL: CRIME E RELIGIÃO NO BRASIL DO SÉCULO XXI | Bruno Paes Manso
Editora: Todavia;
Tamanho: 304 págs.;
Lançamento: Setembro, 2023.
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