As ruas de qualquer cidade são um reflexo de seus habitantes. Dalton Trevisan, de forma idealizada, retratou a (ainda e, ao que tudo indica, cada vez mais) provinciana Curitiba – principalmente, das décadas de 1940, 1950 e 1960. Anos antes, João do Rio (1881 – 1921) havia feito o mesmo com a capital fluminense. De certa maneira, a tradição do escritor/jornalista flâneur estava desaparecida, esquecida. Ferrugem, de Marcelo Moutinho, parece retomar escrita, como um mapeamento de realidade e contextos.
Com uma linguagem simples e direta, Moutinho narra situações pitorescas – como o garoto que se masturba na boneca da irmã ou do professor que se refugia em uma sauna gay – com uma naturalidade rica em detalhes. São composições do cotidiano – o homem apaixonado por uma desconhecida dentro do ônibus e a mulher soropositiva abandonada pelo namorado – ou criações dignas do realismo fantástico – a estrela que cai no tapete da sala após “brotar” do televisor, uma alegoria para as celebridades miúdas e insossas que povoam a televisão brasileira –, mas todos os textos guardam um tom muito próprio do autor, o que chega a dar a impressão de o narrador perpassa tudo aquilo.
O livro é uma literatura da porta para fora, de um autor que se sente confortável em andar nas calçadas, sentar em um bar qualquer e tomar uma cerveja.
Em Ferrugem tudo é muito cru, como se o leitor não pudesse ser poupado de nada. Ainda que o livro seja composto apenas por contos, a linha com a crônica é tênue e quase invisível. Há uma relação forte com o corriqueiro, pessoas que passam sem que sejam vistas. Em todos os 13 textos, Moutinho usa gente comum para compor seus personagens, gente capaz de fazer o banal brilhar. Em entrevista ao canal Arte 1, o escritor explica que, nesse sentido, buscou inspiração no argentino Ricardo Piglia (1941 – 2017). “Meu interesse foi tirar do relativo silêncio esses personagens, (…) e falar sobre a potência que suas vidas têm”, disse.
Explorador de abismo
No caos urbano, não existe abismo maior que a cidade. E o que Moutinho faz é, justamente, explorá-lo, desmembrá-lo – algo muito próximo do que fez paranaense Carlos Machado elaborou em Passeios, seu livro mais recente. Em similaridade, Machado e Moutinho buscam por um discurso das ruas, ou seja, discursos babélicos e labirínticos.
“O conto”, comenta o autor carioca, “é uma crítica a essa modernização a qualquer preço”. Ferrugem vai no cerne do problema: extrapola os limites e as possibilidades da narrativa contemporânea, subverte o que há de tradicional – sem que precise desrespeitá-la – e se estabelece como a voz dos calados.
O livro é uma literatura da porta para fora, de um autor que se sente confortável em andar nas calçadas, sentar em um bar qualquer e tomar uma cerveja.
FERRUGEM | Marcelo Moutinho
Editora: Record;
Tamanho: 160 págs.;
Lançamento: Janeiro, 2017.