Histórias de leves enganos e parecenças (Malê,2016), da escritora mineira Conceição Evaristo, traz doze contos e uma novela, em que o mágico e o maravilhoso se entranham nas narrativas. A invocação do sobrenatural remete à tradição oral, que através de relatos de antepassados, povoaram a imaginação da autora quando criança.
As narrativas, em sua maioria, giram em torno de mulheres – crianças, moças ou mães – protagonistas de suas vivências, que contam e escutam histórias passadas de geração em geração, fazendo emergir o fantástico e o imprevisível a partir de uma mescla entre a tradição e o contemporâneo.
Há mulheres que, à primeira vista, parecem submissas, como Rosa Maria Rosa e Inguitinha. Há outras, desde o início, insubmissas, como Fémina Jasmine, e sua predileção, desde pequena, por gravatas, essa peça do vestuário masculino, especialmente as de formato borboleta, que com ela “fazia profundos voos”:
Fémina Jasmine desde pequena tinha um encantamento por gravatas. Sim, por gravatas. Seu pai era o maior sofredor com a predileção da menina por esta peça tida como da indumentária masculina. Fémina no colo paterno ou quando ele se abaixava para pegá-la e levá-la às nuvens, se força maior ela tivesse, o pai seria declarado morto por enforcamento, mas a frágil força infantil livrava o inocente homem do cadafalso. As mãos de Fémina quedavam-se não só pela gravata-borboleta, peça característica do uniforme do pai garçom, mas também pela peça pontiaguda dos doutores, políticos e outros amantes de certa elegância masculina. Fémina, ja mocinha,nunca deixara de demonstrar sua audaciosa predileção por este charmoso detalhe daqueles que se postavam diante dela. E diante da peça pontiaguda dos distraídos homens, espadas penduradas no peitoris dos cavalheiros, Femina os agarrava tenazmente, pela sedutora peça do vestuário. (página 27)
De forma sutil, as personagens de Conceição Evaristo se insurgem. As forças mágicas ou poéticas são uma defesa contra uma vida excessivamente brutal. Não por acaso, o mágico se imiscui à natureza, compondo uma força intuitiva, como no conto “A menina de vestido amarelo”, quando “ruídos de água desenhavam rios caudalosos e mansos a correr pelo corredor central do templo”. Em outras narrativas, vê-se a resistência de uma classe oprimida resistindo a seu opressor, sem violência. Personagens humildes contrapõem-se a famílias nobres, como Correa Pedragal ou da Sra. Cálida Palmital Viamontes. Ou por roubar migalhas de pão, ou pela morte da coletividade, a ordem hierárquica é subvertida.
Também na novela “Sabela”, a protagonista é a personificação das forças da natureza. Sabela é uma espécie de xamã que consegue ler os sinais da natureza e prevê um dilúvio. Em seu relato pululam personagens, descendentes de povos míticos: palavís, beneventes, dalinrguenses, goldesnes, lindorngalenses. A água é metáfora de uma força da natureza e também dos poderes femininos. Nas narrativas tradicionais, a metáfora da água remete ao elemento primordial e quando ligado ao corpo feminino traz o sentido da fertilidade, flexibilidade e instabilidade. Como fonte de desequilíbrio e destruição aparece preponderante como elemento de mudança na iconografia do dilúvio. Em outras obras, vê-s a recorrência do tema. Está presente em Poemas da recordação e outros movimentos (2011), em Insubmissas lágrimas de mulheres (2011) e Olhos d´água (2016).
Quando no céu retumbaram trovões, gritos rasgados da boca do tempo, as vozes do alto foram repetidas desde lá de dentro das entranhas da terra. Os buracos terrestres, mesmo os bem-bem pequenos, como os minúsculos orifícios por onde penetram as menores formigas, até as crateras de onde jorram os vômitos dos vulcões, todos copiaram os gritos celestes. Todas as inimagináveis frinchas do chão manifestaram-se com um longo e profundo som. Todas as fendas do solo bradaram violentamente, inclusive maior, a guardadora de imensas águas, o mar. Repito. Todos os buracos terrestres devolveram aos céus, em forma de ecos, os brados roucos e lancinantes que se despendiam das nuvens. Tudo foi só um abalo, um transtorno só. Céu e terra como se tudo fosse uma única matéria em rebuliço. Eu lembro que, naquela tarde, os sons mais baixos vinham das vozes humanas em gritaria. Os cães ladravam em uníssono, misturando confusamente seus lamentos aos finos e irritadiços miados dos gatos. Os bichos de dois pés emitiam trinados que de tão estridentes rachavam os bicos. Olhei Sabela, Mamãe tinha a expressão toda úmida. De sua roupa ensopada, a água escorria. Lá fora a chuva nem começara ainda. Era sempre assim. O corpo de minha mãe dava sinal de tempo. (páginas 59 e 60)
Conceição Evaristo é mestra em Literatura Brasileira pela PUC-Rio, e doutora em Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Suas obras, em especial o romance Ponciá Vicêncio, de 2003, abordam temas como a discriminação racial, de gênero e de classe. A obra foi traduzida para o inglês e publicada nos Estados Unidos em 2007. Outras obras: Insubmissas lágrimas de mulheres (2011), Olhos d’água (2014), vencedor do Jabuti em 2015, e Becos da Memória (2016).
HISTÓRIAS DE LEVES ENGANOS E PARECENÇAS | Conceição Evaristo
Editora: Malê;
Tamanho: 106 págs.;
Lançamento: 2016.