É provável que o título de Ioga (tradução de Mariana Delfini, Alfaguara, 2023), obra de não-ficção do escritor francês Emmanuel Carrère, induza alguns leitores ao engano. A palavra talvez sugira que este é um relato sobre os poderes da ioga para a manutenção de uma vida saudável, com dicas de como realizar a prática e descrições detalhadas de seus benefícios.
Não é isto que acontece aqui. Bom, fala-se sim de ioga e meditação, mas Carrère usa o tema (que era a proposta inicial do projeto: fazer um “livrinho” sobre ioga) e acaba utilizando-o como um suporte para falar de assuntos pessoais. Em especial, sobre a própria decadência de sua saúde mental e sua luta contra a depressão e a bipolaridade, culminando em uma internação psiquiátrica de quatro meses.
Construído como uma espécie de diário, trata-se, a bem dizer, de um “livro-mosaico” com quatro linhas narrativas centrais. Na primeira, acompanhamos a ida do escritor em 2015 a um retiro de ioga Vipassana por dez dias. Praticante de meditação há décadas, ele tem o plano de “passar a perna” no isolamento e depois escrever sobre a sua experiência.
Ocorre que, no quarto dia de retiro, uma tragédia acomete o mundo: o ataque ao jornal satírico Charlie Hebdo, em Paris, vitimando 15 pessoas – incluindo um grande amigo de Emmanuel Carrère. Nesta segunda parte, ele é então retirado do espaço em que estava para que possa escrever a elegia no funeral do amigo. Ioga então narra suas impressões sobre todo o caos e os sentidos em torno da falta de sentidos de uma tragédia desse tipo (seria, de fato, uma emergência retirá-lo da ioga?).
O terceiro relato envolve a descida de Carrère ao inferno: o enfrentamento de sua depressão e de sua bipolaridade depois de ser internado pela irmã em um hospital psiquiátrico. Seu estado é tão severo, com alto risco de suicídio, que ele recebe tratamento com eletrochoques. É possível que um homem que tira tanto proveito dos recursos da meditação, e que faz uma longa digressão sobre os seus significados, tenha um interior tão danificado?
A promessa da escrita franca de Emmanuel Carrère, segundo ele pontua várias vezes em Ioga, é encarar a literatura como um lugar onde não se mente. O que chega até nós são as elucubrações de autor sobre vários temas que concernem a muita gente, mas que aqui contam com uma precisão única para narrá-las, o que parece fazer jus à sua boa fama literária.
Ainda não forneça exatamente respostas, as perguntas propostas por Carrère são suficiente ricas para fazer a leitura valer a pena.
Ainda não forneça exatamente respostas, as perguntas propostas por Carrère são suficiente ricas para fazer a leitura valer a pena. Talvez a principal delas, ao menos à minha leitura, seja esta: o que é real acerca do nosso sofrimento mental? Pessoas que sofrem de depressão e melancolia costumam ter a sensação de que a infelicidade é dolorosamente verdadeira, mas que a felicidade é sempre uma ilusão.
A meditação, para Carrère, aparece como uma ferramenta para chegar perto da sonhada clareza mental, tão cara (e rara) a maior parte de nós. Entre os diferentes conceitos que apresenta, ele escreve: “a meditação é observar os pontos de contato entre o que é você e o que não é você. A meditação é o fim das flutuações mentais. A meditação é observar essas flutuações mentais chamadas vritti para acalmá-las e por fim extingui-las (…). A meditação é aceitar tudo que se apresenta. A meditação é não contar histórias para si mesmo”.
Polêmicas
Ioga também chegou ao mundo cercado de uma grande polêmica. Na quarta e última parte, Carrére viaja para a Grécia, onde convive com um grupo de refugiados afegãos para quem dá aula de escrita criativa. Isso serve como mote para ele discorra sobre a relatividade do sofrimento (a sua tragédia é maior que deles?) e sobre a necessidade da entrega de si ao outro, como a única forma de poder, de fato, conectar-se à dor alheia.
Ocorre que a ex-esposa do escritor, uma famosa jornalista de TV francesa chamada Héléne Devynck, tem um acordo pós-nupcial que lhe dá o direito de vistoriar e vetar qualquer coisa que Carrère escreva sobre ela e a filha. Por conta disso, Ioga teve trechos cortados. Mas, mais do que isso, ela escreveu um artigo contestando trechos do livro, que é categorizado como de não-ficção.
Héléne mencionou que muito do que o escritor narra não aconteceu, nem que a ida para a Grécia tenha ocorrido depois da internação, conforme apresentado na obra – sugerindo, portanto, que haja um fim de redenção depois que Emmanuel Carrère “atende” os garotos menos favorecidos.
Isso invalida as qualidades de Ioga? Difícil dizer – ainda mais por se tratar um escritor que assume tão explicitamente o compromisso de não mentir. Mas penso que a escrita fluida e envolvente de Carrère, assim como a franqueza com que encara temas tão difíceis, trazem uma característica única à obra.
São questões realmente profundas tratadas nela. Dentre os momentos mais fortes do livro, estão os momentos de desespero em que Carrère resolve consultar um psicanalista ex-jesuíta que ele tem como se fosse um guru. É dele que o escritor recebe o conselho que o libertou das amarras do suicídio: “você tem razão. O suicídio não é muito bem-visto, mas às vezes ele é a melhor solução. Ou então você pode viver”.
Ioga é daqueles livros em que se sente estar entrando em contato com partes de nós que não acessamos frequentemente. Se isso não faz uma obra valer a pena ser lida, eu não sei o que faz.
IOGA | Emmanuel Carrère
Editora: Alfaguara;
Tradução: Mariana Delfini;
Tamanho: 272 págs.;
Lançamento: Fevereiro, 2023.
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