Conhecido do grande público por sua obra de estreia – As Virgens Suicidas, lançada em 1993 – Jeffrey Eugenides tem um talento peculiar: assim como seu contemporâneo Jonathan Franzen, seu estilo revela uma sensibilidade especial para a construção de personagens femininas. O universo das irmãs Lisbon em seu primeiro livro já demonstrava isso. Sua Madeleine Hanna em A trama de casamento, obra de 2012, é fascinante justamente pela atenção dada pelo autor a suas pequenezas, seus pequenos dramas e vaidades, algo fúteis numa visão masculina, mas construídas com delicada precisão por Eugenides.
Chegamos então a Middlesex (Companhia das Letras, 576 págs.), sua segunda obra, vencedora do prêmio Pulitzer em 2002. A protagonista Cal, já na abertura, abre o jogo aos leitores nesta espécie de autobiografia: “nasci duas vezes: primeiro, como uma bebezinha, em janeiro de 1960, num dia notável de ausência de poluição no ar de Detroit; e de novo com um menino adolescente, numa sala de emergências nas proximidades de Petoskey, Michigan, em agosto de 1974”. Calíope Stephanides, portanto, é um hermafrodita, oriundo de uma família greco-americana migrada para uma Detroit em pleno processo de ascensão e queda das indústrias automobilísticas que, logo mais, torna-se uma cidade destroçada pelas disputas raciais ocorridas ao longo deste período. O desafio de Eugenides é, portanto, abordar a complexidade de ser Cal, que se identifica com ambos os gêneros, mas se sente nitidamente inadequada em cada um deles.
A obra pode ser vista como uma espécie de Cem anos de solidão contada sob o olhar da tragédia grega, introjetada na visão de mundo dos Stephanides, sempre propensos a lançar mão de suas velhas tradições – tais como criar casulos de bichos de seda e realizar simpatias para determinar qual o sexo de um bebê. Acompanhamos, desde o início, a saga desta família após um inusitado casal migrar, em plena guerra, da Turquia aos Estados Unidos carregando, sem saber, o fatídico “gene recessivo do quinto cromossomo”. A partir da vinda de Desdêmona e Esquerdinha para a América, a história se desenrola em uma divertidíssima trama familiar com personagens tão cativantes quanto cômicos: entre eles, a vanguardista tia Sourmelina, que fugiu da Turquia por se interessar menos pela igreja do que pelas meninas que a frequentavam; o irmão nerd Um Sete Um, um perfeito produto dos anos 70, para quem o consumo excessivo de ácido facilita que aceite a condição da irmã/ irmão; ou o detestável cunhado padre Mike, cuja (falta de) altura é um fator central para a sua personalidade.
A história de Cal adquire força justamente por revisitar a história de Édipo, que tem seu destino revelado – a maldição de que mataria seu pai e casaria com a mãe – pelo velho profeta Tirésias.
Tudo o que sabemos se dá pelo ângulo de Cal, que conta a história em retrospectiva, sob um ótica bastante peculiar de alguém que se situa em um entre eterno, entre biologia e cultura, entre desejo e razão, entre destino e escolha. A questão de gênero é central à obra e se explicita na própria forma em que Cal (ou Callie) vê o mundo. Algumas sacadas são geniais. A menina Callie, em meio a um turbilhão de conflitos adolescentes, em um momento, reclama: “emoções, pela minha experiência, não cabem numa palavra. Não acredito em ‘tristeza’, ‘alegria’ ou ‘remorso’. Talvez a maior prova de que a língua é patriarcal seja o fato de que simplifica abusivamente os sentimentos”. Difícil expressar melhor os embates internos que a cercam.
A história comove justamente pelo caráter profundamente humano de sua trajetória. As referências à mitologia grega são diversas – quando adolescente, Cal chega a interpretar no teatro Tirésias, o profeta cego de Tebas que foi homem e mulher. Talvez a intertextualidade não se dê ao acaso: a história de Cal adquire força justamente por revisitar a de Édipo, que tem seu destino revelado – a maldição de que mataria seu pai e casaria com a mãe – pelo velho profeta. A narrativa, desde o início, nos entrega o destino que espera por Cal, mas a tensão se situa exatamente na esperança de que ela não chegará, de que Callie irá menstruar, desenvolver seios, que a atração pelas colegas será passageira e que ela poderá seguir a vida como uma “menina normal”. A inevitabilidade do destino: eis aqui a grande força dramática de Middlesex, e os momentos que sucedem a essa derradeira constatação por Callie são incrivelmente tocantes.
Cada vez mais atual, Middlesex é uma leitura prazerosa aos fãs dos grandes romances, dos escritores da nova geração americana, das narrativas da mitologia grega, aos interessados em temas ligados à sexualidade humana e a todos que apenas buscam pelo deleite de contemplar uma história maravilhosamente contada.
MIDDLESEX | Jeffrey Eugenides
Editora: Companhia das Letras;
Tradução: Christian Schwartz;
Tamanho: 576 págs.;
Lançamento: Outubro, 2014.
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