“A chamada cultura do estupro é coisa da cabeça das feministas, desse povo da esquerda, que adora achar pelo em ovo. Engraçado, nós vivemos anos sem nunca ouvir falar disso, e agora, de uma hora para outra, tudo é estupro”. Se você é um desses indivíduos que defende publicamente ideias como essa, Missoula, o novo livro reportagem do jornalista Jon Krakauer, lançado este ano pela Companhia das Letras, é para você.
Conhecido sobretudo pela cultuada obra Na Natureza Selvagem (que reconstitui a história do jovem Chris McCandless, que abandona sua vida capitalista para buscar a si mesmo em uma viagem até o Alaska; o livro gerou um filme monumental, dirigido por Sean Penn, em 2007), Krakauer é um profissional ligado às aventuras (é autor também de No Ar Rarefeito, que relata uma trágica expedição ao Monte Everest, em 1996) e ao trabalho investigativo. Em Missoula, ele se aprofunda na realidade de uma pequena cidade universitária norte-americana, no estado da Montana, conhecida pela paixão que os moradores têm pelo time universitário de futebol americano, os Grizzlies.
Krakauer parte deste contexto provinciano para investigar um fenômeno que permanece algo invisível. Entre 2008 e 2012, foram registrados 350 casos de estupro em Missoula. Se o número parece impressionante, urge aqui apontar que o jornalista escolheu a cidade justamente porque lá os índices são condizentes com o resto dos Estados Unidos, ou seja, não são altos nem baixos, conforme explicou em entrevista ao jornal Folha de São Paulo.
Muitos casos, no entanto, nem chegam a ser registrados – há todo um processo burocrático e doloroso que faz com que muitas denúncias não sejam reconhecidas pela polícia, como Krakauer desvenda em Missoula. Por vezes a mídia divulga que “a vítima não quis prestar queixa”, e esquece que em parte isto se dá pela intrincada trama dos processos jurídicos; não é, portanto, uma decisão da vítima, como pode parecer. Um dado excruciante: muitas das vítimas relataram que, quando estiveram na Polícia, ouviram como uma das primeiras perguntas se tinham namorado, pois seria muito comum mulheres inventarem casos de estupro para explicar traições. São desacreditadas em primeiro lugar, para depois terem que provar que falam a verdade.
Mas talvez o mais escandaloso dado de Missoula seja justamente a definição do que é estupro.
Já as que levaram os casos adiante passam por sofridos julgamentos em que precisam ser escrutinadas em público e têm suas reputações destruídas por advogados de defesa. O processo de denúncia de um estupro – esclarecem os promotores – não é para as almas frágeis. Na realidade da cidade de Missoula, as mulheres que denunciam são ainda execradas pela legião de fãs apaixonados dos Grizzlies, uma vez que muitos dos casos envolvem os cultuados jogadores do time.
Mas talvez o mais escandaloso dado de Missoula seja justamente a definição do que é estupro. Conforme Krakauer esclarece, com o apoio de várias fontes especializadas, tendemos a compartilhar em nosso imaginário desde criança uma imagem semelhante do estuprador: é a de alguém desconhecido, vestindo uma máscara de esqui, que encurrala uma mulher em um beco para violentá-la (foi a imagem reiterada, por exemplo, na minissérie Justiça, exibida recentemente pela Rede Globo). Porém, a realidade do estupro é muito mais escandalosa e mais próxima.
E aí chegamos aos casos, chocantes de tão banais. Na maior parte, associam-se ao uso de álcool em festas, o que corrobora à descrença da idoneidade das vítimas. Muitas haviam se interessado pelos homens que posteriormente a estupraram, gerando uma nebulosa discussão sobre o que significa sexo com consentimento. Uma delas é Allison Hughet, que após uma balada na casa de um amigo de infância, jogador dos Grizzlies, resolve dormir no sofá ao invés de voltar bêbada para casa (o inimigo está na esquina, nós ouvimos…). Ela é acordada com os gemidos do amigo, que desabotoou sua calça e tirou sua calcinha para penetrá-la enquanto dormia.
Os casos, obviamente, são todos repugnantes, em maior ou menor medida. Chama a atenção outra história, a de Kaitlynn Kelly. Em 2011, Kaitlynn foi a uma festa com seus amigos e se interessou por Calvin Smith (pseudônimo), e resolveu levá-lo à casa estudantil onde dormia. Chegando lá, descobre que sua colega de quarto estava dormindo no mesmo dormitório, e volta atrás no acordo de que fariam sexo. Calvin, no entanto, acaba forçando a barra para penetrá-la e fazer sexo oral com ela, deixando marcas pelo seu corpo e sangue espalhado pelo quarto. Ao final do ato, vai embora, levando sua calça jeans.
Mas o que é mais impactante só aparece depois, após a instauração de um processo. Descobrimos que Calvin era virgem e que tudo que sabia sobre sexo vinha dos filmes pornôs a que assistia. Portanto, conforme argumenta, durante toda a situação ele realmente acreditava que Kaitlynn estava gostando e tendo prazer. A calça, viemos a saber, foi levada como um troféu para exibir aos amigos igualmente inexperientes. Eis aqui, em tintas claríssimas, as profundezas da cultura do estupro.
Ao investigar toda esta história, Krakauer é um jornalista rigoroso em busca de vários pontos de vista e fontes, buscando garantir objetividade aos relatos. No entanto, talvez diferente de seus outros livros, aqui seu olhar é assumidamente parcial: ele posiciona-se claramente na defesa de todas as mulheres que denunciam e contra todos aqueles que, em alguma medida, se situam ao lado dos pretensos estupradores. Chega, inclusive, a inflar de adjetivos negativos a descrição destes personagens, como advogados, juízes, testemunhas de defesa.
É algo que talvez possa gerar alguma crítica a um leitor mais atento, pois não é o que normalmente espera, a princípio, de um jornalista. Em sua defesa, podemos dizer que seu exercício é da honestidade com o seu público. Em algum momento, Krakauer chega a declarar que escreveu o livro em parte para lidar com a culpa de ter descoberto que muitas mulheres próximas a ele haviam passado por verdadeiros infernos decorrentes da violência sexual, sem que ele nunca sequer desconfiasse.
Se ao final de Missoula o caro leitor ainda tiver alguma dúvida sobre a realidade da tal chamada cultura de estupro: meu amigo, reveja seus conceitos, ou então suas habilidades de leitura. Um livro imperdível.
MISSOULA | Jon Krakauer
Editora: Companhia das Letras;
Tradução: Sara Grünhagen;
Tamanho: 472 págs.
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